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04/05/2018

Revista Piauí: O matemático que deu profundidade à superfície

FOTO: MILTON MONTENEGRO

Da esquerda para a direita: Elon Lages Lima, Manfredo do Carmo, Jacob Palis e Mauricio Peixoto.

 

Reprodução da revista Piauí

O matemático alagoano Manfredo do Carmo, considerado o pai da geometria diferencial no Brasil, morreu no Rio de Janeiro na última segunda-feira, 30 de abril, aos 89 anos. Pesquisador emérito do Impa, o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, Carmo foi um dos jovens talentos que abriram mão de uma carreira promissora no exterior para dedicar-se à consolidação de um centro de excelência em sua disciplina no Brasil.

“Manfredo é um dos raros casos de pessoas que criou uma área de pesquisa”, disse-me numa entrevista telefônica seu colega Marcelo Viana, atual diretor do Impa. “Ele estabeleceu a geometria diferencial, que se tornou das áreas da matemática mais bem-sucedidas e mais espalhadas pelo país.”

A geometria à qual Carmo se dedicou é aquela por trás da teoria da relatividade geral. Quando pedi a Viana que me explicasse o tipo de matemática feita pelo alagoano, ele recorreu à metáfora de bolhas de sabão. “Quando você sopra uma delas, a película adquire uma forma determinada pelo princípio de mínimo esforço, de modo a minimizar a tensão”, explicou. Carmo se dedicava ao estudo dessas superfícies, a chamada teoria das superfícies mínimas. “Ele foi um dos grandes impulsionadores dessa teoria e desenvolveu muitas ferramentas para seu estudo”, disse Viana.

Carmo é conhecido também pelos livros-texto que escreveu, adotados em cursos de geometria pelo mundo afora. Seus manuais – o maior clássico é Geometria Diferencial de Curvas e Superfícies – foram publicados em inglês, espanhol, alemão, chinês, russo e grego. “São obras-primas, livros definitivos”, elogiou Viana. “E isso numa época em que havia muito pouca literatura sobre matemática em português.”

Nascido em 15 de agosto de 1928 em Maceió, Manfredo Perdigão do Carmo se formou em engenharia na Universidade de Recife, mas não chegou a trabalhar na área. Sua guinada para a matemática se deu em 1957, quando participou do primeiro colóquio nacional dedicado à disciplina, em Poços de Caldas, Minas Gerais.

“Havia um número muito pequeno de pessoas interessadas pelo tema naquela época no Brasil”, disse-me Carmo quando o entrevistei em maio de 2017. “Só uns quatro ou cinco já tinham feito pesquisa em matemática.” O evento reuniu um punhado de estudantes e professores – não mais de quarenta, segundo sua lembrança –, mas foi o bastante para lhe abrir uma nova perspectiva. “O colóquio me deu a ideia de que eu poderia ser um profissional de matemática. Eu não sabia que isso era possível.”

Entrevistei o alagoano em sua casa no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Na ocasião, estava preparando o obituário do seu conterrâneo Elon Lages Lima, outra figura importante para a consolidação do Impa como um centro de excelência em matemática. Então aos 88 anos, Carmo era um senhor bem humorado de rosto longo e boca pequena. Com fala fluente e serena, evocou por mais de uma hora a trajetória profissional do colega e a sua própria.

Por indicação de Lima, Carmo fez um estágio em 1959 no Impa, que havia sido fundado no início daquela década. Entusiasmou-se com o dinamismo daquele ambiente povoado de jovens matemáticos com boas ideias de pesquisa. “Foi um período muito rico”, disse o alagoano. Em 1960, foi fazer doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, orientado pelo chinês Shiing-Shen Chern, fundador da geometria diferencial.

Como o colega mineiro Jacob Palis, um especialista em sistemas dinâmicos que também fez doutorado em Berkeley, Carmo decidiu voltar para o Brasil, onde acreditava que poderia contribuir para o desenvolvimento de seu campo. “Os matemáticos brasileiros eram meia dúzia e faziam a pesquisa lá fora”, disse o alagoano numa entrevista a João Moreira Salles, editor da piauí, em 2013. “Jacob e eu pensávamos numa matemática realizada aqui por gente que não precisaria mais deixar o país.”

De volta ao Brasil, Carmo foi professor da Universidade de Brasília, recém-criada por Darcy Ribeiro. “A UnB era nosso grande sonho de fazer uma universidade que servisse de modelo para as outras”, contou-me o geômetra. Mas o sonho durou pouco, e ele estava entre os quase 200 professores que pediram demissão da UnB por atritos com os militares depois do golpe de 1964. Tornou-se pesquisador do Impa em 1966, e continuou a manter seu gabinete no instituto mesmo depois de se aposentar, em 1997. “Manfredo ficou matematicamente ativo até praticamente o fim da vida”, disse Marcelo Viana.
Manfredo do Carmo era o decano de uma legião de matemáticos alagoanos talentosos – a começar pelo colega Elon Lages Lima (ambos atribuem o gosto que pegaram pela disciplina a um professor marcante dos tempos de escola, Benedito de Morais). Estudantes formados pela dupla se encarregaram de levar o bastão adiante – é o caso de Hilário Alencar, aluno de Carmo que se tornou professor da Universidade Federal de Alagoas. Carmo foi provocado certa vez a explicar a concentração atípica de bons matemáticos em seu estado. “É o sururu”, arriscou, referindo-se à iguaria que foi considerada patrimônio imaterial alagoano.

O herdeiro de maior projeção da república matemática das Alagoas é Fernando Codá, ex-aluno do Impa que hoje é pesquisador da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Professor de Codá no Impa, Carmo foi dos primeiros a se entusiasmar com o talento do jovem aluno, hoje um dos nomes de maior projeção da matemática brasileira.

Codá decidiu se especializar em geometria por causa das aulas que teve com Carmo. Chegou a começar um doutorado no Impa, orientado por ele, mas seguiu o conselho do mestre e foi fazer seu PhD na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. “As conversas com ele eram sempre bem humoradas e cheias de uma sabedoria fina”, disse-me Codá por telefone ao evocar a memória do professor. “Ele foi fundamental para minha formação”, continuou o alagoano, que adota um livro de Carmo com seus alunos em Princeton.

Como não terminou o doutorado com Carmo, Codá não figura oficialmente entre os herdeiros acadêmicos do alagoano. A descendência completa do geômetra, compilada pelo Mathematics Genealogy Project, conta com 27 “filhos” – doutores formados por ele ao longo de quatro décadas – e 83 “netos”.

Assista a uma entrevista de Manfredo do Carmo feita por Fernando Codá em 2009: