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17/06/2022

Beleza da matemática ‘só se revela a quem a explora a fundo’

Cecília Manzoni

Não raro objetos matemáticos costumam ser apreciados por sua beleza e superioridade estética, assim como a música, a poesia e outras formas de arte.  O prazer estético proporcionado pela disciplina está ao alcance de todos, mas demanda treinar a percepção.  Pesquisador extraordinário do IMPA e ganhador da medalha Fields em 2014, o carioca Artur Avila garante que, para desfrutá-lo de fato, é preciso construir uma relação de intimidade com este universo. “A matemática tem essa opacidade, sua beleza só se revela a quem a explora mais a fundo”, diz.

Parte deste mistério se explica pelo fato de que as provas e demonstrações da área exigem muito mais dedicação do que se supõe. Se à primeira vista os resultados parecem simples em sua forma, a argumentação requerida para alcançá-los pode envolver grandezas imensuráveis.

“Algumas demonstrações envolvem infinitos passos, e cada passo tem que ser totalmente sólido ou o edifício argumentativo desabaria. Matemáticos aprendem a usar esse infinito de forma muito precisa. Até para entendermos objetos bastante concretos (matematicamente falando) podemos precisar dessas manipulações super abstratas. É como ir até o espaço e voltar, para chegar em um resultado bem pé na terra, que não parece falar sobre nenhum infinito”, compartilha o pesquisador, que divide o tempo entre o instituto brasileiro e a Universidade de Zurique (Suíça), onde é pesquisador titular.

A perenidade dos teoremas é um dos aspectos que Artur mais estima na disciplina. Se os modelos desenvolvidos em outras ciências, como física e química, por vezes podem ser descartados com a evolução do tempo, as provas matemáticas têm validade eterna, e seu conhecimento efeito cumulativo. “É algo que tomamos como natural e justifica um pouco o nosso esforço. Quando você consegue provar alguma coisa na matemática, aquilo realmente fica válido e você consegue construir outras coisas em cima disso. Temos essa certeza que estamos indo sempre para frente.”

Participação em olimpíadas científicas foi crucial para escolher a matemática

Essa característica despertou a curiosidade de Artur em seus contatos iniciais com a matemática. Como muitas crianças da década de 80, o pesquisador era fã de “Cosmos”, obra de Carl Sagan que traz conhecimentos sobre a natureza, a vida e o Universo. “Lembro que o livro falava da prova da irracionalidade da raiz quadrada de 2, uma prova simples, conhecida há mais de 2 mil anos e que encerra a questão.” Foi também a partir de publicações de divulgação científica em astronomia que teve contato com “números grandes”, como a distância entre os planetas do sistema solar.

O currículo de matemática do tradicional Colégio São Bento, do Rio de Janeiro, onde o pesquisador estudou até os 15 anos, não foi suficiente para suprir seu apetite acadêmico. Desde o ensino fundamental, Artur adquiria material didático mais avançado para ampliar seu conhecimento na disciplina. Apesar de não terem formação em matemática, seus pais, Raimundo Nonato e Lenir Letiere, o estimulavam nesta busca.

“Na escola, sempre tive vontade de ler coisas que não estavam sendo ensinadas ainda, textos de anos futuros. Meus pais não tinham muita maneira de me guiar para textos mais específicos, mas eu lia bastante qualquer coisa, pedia a eles para comprar livros etc. e, com base nesses livros, eu ia aprendendo”, relembra o pesquisador.

Quando chegou à 7ª série, equivalente ao 8º ano hoje, soube da Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM), e conquistou uma medalha de bronze na estreia. Por causa das premiações da competição, à época realizadas no IMPA, Artur pisou pela primeira vez no instituto, que, conta, o apresentou à “existência da profissão de matemático”.

Através dos problemas lúdicos da competição, que passou a disputar ano após ano, conheceu um novo modo de experimentar a disciplina. “Você entende que existe uma teoria por trás daquilo que está tentando solucionar, além da simples criatividade. Fui me habituando a estudar estas teorias e passou a ser um processo muito prazeroso explorar isso”, conta.

Para o pesquisador, as olimpíadas científicas são uma forma eficiente de atrair crianças para a área. “A matemática destas competições não é a mesma da pesquisa científica. A situação, o tempo, tudo é diferente. Mas os problemas das olimpíadas podem iniciar as crianças em um processo de concentração e de recompensa. Elas passam a ter a noção de que conseguem demonstrar alguma coisa e trabalhar em cima do padrão encontrado.”

Homenagem a Artur Avila na OBMEP

Pesquisador teve trajetória relâmpago na pós-graduação

A conquista de uma medalha de ouro na Olimpíada Internacional de Matemática (IMO, na sigla em inglês), em 1995, chamou a atenção dos pesquisadores do IMPA, que convidaram o então estudante a cursar algumas disciplinas de mestrado, como a aula de introdução à topologia de Elon Lages Lima, ex-diretor e pesquisador emérito do instituto. Apesar de discreto, o desempenho do aluno nas aulas mostrou que ele poderia ir além. Em 1996, Artur conciliou o último ano do ensino médio com o mestrado no IMPA, antes mesmo de iniciar a graduação na área.

Apesar de muito jovem, conta que não se sentiu intimidado de circular no ambiente que reunia grandes cânones da pesquisa matemática brasileira. “Já tinha contato com muitos professores que eram ligados à olimpíada, como o Gugu (Carlos Gustavo Moreira). Conversava muito com o Elon, que tinha uma preocupação enorme com a transmissão e educação matemática. Ele tinha muita paciência comigo e me chamava para conversar por bastante tempo, estabelecendo um contato individualizado que aproveitei bastante neste momento.”

A partir dali, o carioca viveu uma trajetória-relâmpago nos estudos. Em 2001, aos 21 anos, terminou o doutorado, também no IMPA, e, de quebra, a graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o doutorado na área de sistemas dinâmicos, orientado por Wellington de Melo, colaborou com autores como Mikhail Lyubich, vencedor do Prêmio Jeffery–Williams de 2010, e o francês Jean-Christophe Yoccoz (1957-2016), medalha Fields e pesquisador honorário do IMPA.

Artur com os pesquisadores Stephen Smale, Jacob Palis (ex-diretor do IMPA e orientador do Wellington de Melo), Wellignton de Melo (orientador do Artur) e Maurício Peixoto (um dos fundadores do IMPA)

Com a internacionalização de sua formação, começou a pavimentar, ainda no final do doutorado, caminhos para se vincular a universidades francesas. Chegou ao país em 2001, para um pós-doutorado de dois anos no Collège de France, em Paris, orientado por Yoccoz. A pluralidade de áreas matemáticas das universidades francesas expandiu os horizontes do pesquisador, que à época se debruçava sobre dinâmicas unidimensionais com métodos complexos.

“Em Paris, existiam pessoas interessadas por isso, mas não era muito o centro das atenções, me senti inicialmente até um pouco isolado. Mas foi muito bom porque me levou a  interagir com outros temas, ainda em sistemas dinâmicos, mas em direções que nunca tinha pensado em ir. E funcionou muito bem. Consegui resultados bons também nas áreas de operadores de Schrödinger, e dinâmica em espaços de Teichmuller, e passei a ter um reconhecimento internacional”, compartilha.

O vigor e excelência acadêmica do pesquisador estão expressos na quantidade e qualidade de seus artigos científicos. Artur teve 27 trabalhos publicados nas principais revistas da matemática: Annals of Mathematics, Acta Mathematica, Publications Mathématiques de l’IHES, Journal of American Mathematical Society e Inventiones Mathematicae. 

Conquista da medalha Fields atestou qualidade da matemática feita no Brasil

O ápice deste reconhecimento veio com a conquista da medalha Fields, entregue a Artur durante o Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, na sigla em inglês) de 2014, em Seul, na Coreia do Sul. Mais prestigiosa distinção da área, a medalha é comparada ao “Nobel da matemática”, e concedida de quatro em quatro anos para matemáticos de até 40 anos que contribuíram significativamente para o avanço da disciplina. Ele foi o primeiro (e ainda único) latino-americano a receber o prêmio.  Uma vitória também do IMPA, já que nenhum outro ganhador recebeu seu doutorado numa instituição do Hemisfério Sul.

Além do prestígio na comunidade acadêmica – já então reconhecido pelos prêmios Salem (2006), EMS (2008) e o Prix Jacques Herbrand de 2009 –, a conquista da medalha Fields evidenciou para a população brasileira o nível avançado da pesquisa matemática nacional.

“Não existe muita dúvida sobre a qualidade representada pela medalha Fields. O fato de que alguém formado pelo IMPA, um instituto brasileiro, ganhou esse prêmio, é certamente uma demonstração muito forte da qualidade da matemática do país, que pode ser apreciada por qualquer pessoa. Também sinto que trouxe para alguns jovens a ideia de que a matemática é uma carreira que pode ser seguida no Brasil ”, frisa Artur.

Entrega da Medalha Fields a Artur Avila durante o ICM 2014

Colaboração é marca registrada do processo do pesquisador

Se durante a infância e a juventude tinha o hábito de adquirir conhecimento através dos livros, hoje, seu processo é outro. “Leio muito pouco, quase nada de livros e só pedaços de papers”, confessa. Para desenvolver suas provas matemáticas, Artur acredita ser mais eficiente conversar com seus pares. No comunicado enviado à imprensa alertando para a conquista do brasileiro, a União Internacional de Matemática (IMU, na sigla em inglês), organização que concede a Medalha Fields, ressaltou que “a abordagem colaborativa de Artur é uma inspiração para uma nova geração de matemáticos”.

“Em geral, aprendo matemática com outras pessoas. Existe a maneira de escrever matemática, com fórmulas e equações, e o modelo mental. E transmitir um modelo mental de uma pessoa para outra é algo complicado. O processo de comunicar suas ideias para um colaborador próximo pode clarificar as coisas na sua cabeça. É importante para entender melhor o que se está fazendo. Se você finalmente consegue explicar, talvez tenha realmente conseguido entender.”

Ministro Mendonça Filho, da Educação, em visita ao IMPA em 2017, com Artur Avila, o diretor-adjunto do IMPA, Claudio Landim, o diretor-geral, Marcelo Viana, o gerente de TI, Roberto Beauclair, o pesquisador honorário Étienne Ghys e o pesquisador Luiz Henrique de Figueiredo

Ainda assim, algumas barreiras parecem intransponíveis, até mesmo para os ganhadores da medalha Fields. “A situação básica do matemático é ficar travado com muita frequência”, compartilha. “Em geral, você lida com um problema realmente difícil e esbarra em um ponto que não consegue passar. Tenta achar alguma coisa fora das técnicas usuais que outras pessoas já usaram para dar um passo adicional e ganhar espaço. Qual seria esse passo adicional, por onde e de qual maneira você vai chegar nele? Tem inúmeras opções, mas não há nenhuma garantia de que você vai chegar lá.”

Descrito por alguns colegas, como o francês Yoccoz, como um “resolvedor de problemas”, Artur tem algumas ponderações sobre este tipo de classificação entre matemáticos. Para o brasileiro, a complexidade da prática não se resume ao “binarismo” que costuma categorizar pesquisadores da área entre resolvedores de problemas e construtores de teoria.

“Matemáticos tem gostos variados, mas essa classificação tem suas limitações. Mesmo trabalhando na solução de problemas bem específicos e colocados, é necessário explorar todo um universo. Você pode ser levado em direções muito distantes daquela inicial.  Então esta separação não captura a realidade completa de quem trabalha com matemática”, afirma o pesquisador, que compara o ofício com a escalada de uma montanha desconhecida. “Você tem que ficar procurando os pontos de acesso daquele negócio, mas existem muitas maneiras e desvios para chegar no topo.”