No Livro Histórias Inspiradoras da OBMEP: Rafael Freitas
Tranquilidade inabalável, característica típica de um monge budista, descreve bem o mineiro Rafael Freitas dos Santos. Ele traz consigo a simplicidade e o desapego, valores essenciais para essa crença oriental, e guarda até ensinamentos. Ao explicar o que faz ao se deparar com questões matemáticas complexas, partilha uma forma de agir que também pode ser adotada diante das adversidades da vida: “Olho para o problema e o vejo não como algo difícil, e sim como uma sequência longa de coisas fáceis. Mas que pode ser difícil porque você vai ter de se esforçar muito até chegar ao ponto de entender o que está sendo dito”, diz, acrescentando que a dedicação é o caminho para a realização.
Aos 23 anos, Rafael acredita que foi exatamente assim, com muito suor, que saiu da casa humilde na pequena São Gonçalo de Rio Abaixo, cidade de cerca de 10 mil habitantes na região central de Minas, para estudar em duas instituições de renome: fez o bacharelado em Física na Universidade Federal de Viçosa e, depois, foi admitido na Unicamp, onde é aluno de mestrado em Matemática Aplicada. Fácil nunca foi.
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Desde o começo. Aos três meses, a mãe, adolescente ainda, deixou-o na casa dos avós paternos, no mesmo sábado do batizado, para nunca mais voltar. Por conta do alcoolismo, o pai tornou-se uma presença bissexta. Quando fala sobre o passado, Rafael mantém a serenidade, referindo-se a uma “estrutura familiar nada convencional” e não revela nenhum traço de ressentimento. Possivelmente, por ter crescido cercado de muito amor. Criado pelos avós paternos, com a ajuda das quatro irmãs e dos três irmãos de seu pai, Rafael foi se fazendo gente transbordando a família de orgulho.
“Morria de medo que ele crescesse revoltado pelo fato de a mãe não ter podido criá-lo. Mas isso nunca interferiu. Ele é extra”, atesta Cláudia Maria dos Santos, a respeito do sobrinho, que, cedo, mostrou familiaridade com os números. Meninote ainda, impressionava por saber dar o troco direitinho ao vender velas para a procissão da Semana Santa. Na escola, Rafael era aplicado. Em 2005, ano de criação da Obmep, fez a prova por insistência da professora, mas não passou para a segunda fase.
No ano seguinte, encarou o desafio novamente, mas sem expectativa alguma, pelo fato de ser de um município muito pequeno, “uma roça mesmo”, marcada pelas dificuldades. Tomou um susto ao ver que ganhara medalha de bronze. Nos dois anos seguintes, repetiu o feito.Quando lembra do episódio, Rafael destaca o papel preponderante da professora, de quem lembra nome e sobrenome: Rita Vanessa Pio Lage. “Ela tinha uma maneira mais legal de apresentar o conteúdo para a turma. E foi fundamental por ter insistido para que eu fi zesse a prova e por ter me despertado mais para a Matemática”, diz.
Naquela época, era aluno da Escola Estadual Desembargador Moreira dos Santos, onde concluiu o Ensino Fundamental. “Foi a parte mais importante da minha vida escolar. Talvez até mais do que a graduação ou o mestrado”, diz.O desempenho na Obmep só aumentou a intimidade com a Matemática. Com as medalhas conquistadas, garantiu o direito de entrar no PIC e, assim, ganhar uma bolsa de estudos e a oportunidade de estreitar os laços com pessoas que, como ele, adoravam se debruçar sobre problemas que desafiavam o raciocínio.
“Ter ganhado uma medalha na 6º séria mudou completamente a minha perspectiva de vida. Passei a enxergar um mundo através do estudo”, avalia. Em casa, o orçamento era bem apertado. Ainda assim, os sete tios cotizaram-se para pagar a mensalidade de uma escola particular, onde fez o Ensino Médio. Quando chegou à universidade, em 2015, a vaga conquistada em uma instituição federal garantiu ensino gratuito de qualidade, mas ainda era necessário ter recurso para a manutenção.
Foi aí que o Picme possibilitou a permanência de Rafael na universidade. “Passei a graduação inteira com bolsa do programa. Além de ser uma oportunidade de estar aprendendo Matemática, aqueles R$ 400 eram suficientes para me manter. Precisava daquele dinheiro”, enfatiza o estudante. Garantido o sustento, Rafael tirou o máximo proveito da vida universitária: estudou com afinco, foi representante de turma, atleta, dedicou-se à música, conheceu pessoas de outras áreas do conhecimento, fez amizades. Foi lá na Federal de Viçosa, em 2013, que a caloura Rachel Lucas Mendes de Andrade cruzou com o veterano prestativo, “que estudava bastante, mas tinha vida social”.
Logo surgiu uma empatia, que permaneceu quando ela trocou Física por Ciências Sociais. Rafael passou a andar com a turma de Humanas e ter contato com uma visão diferente de mundo. Sobre o amigo, diz que uma de suas características mais marcantes é a humildade. “E olha que ele é uma pessoa que tem tudo para ter um ego grande”, observa a universitária, contando ainda que, apesar das dificuldades, nunca o ouviu dizer que estava insatisfeito com a vida.
“Ele morava no alojamento, não tinha muita condição de passear, sempre viveu de bolsa”, observa, ressaltando que Rafael ainda ajudava as pessoas, dando aula de graça em cursinhos pré-vestibulares.A condição do outro, aliás, importa a Rafael, que considera a desigualdade social o maior problema da sociedade, porque está por trás de muitos entraves que vivenciamos hoje e contribui para resultados críticos em áreas da Educação – na Matemática, inclusive.
“Os índices educacionais refletem muito do que acontece na sociedade. Os resultados desastrosos em Matemática revelam a própria estrutura socioeconômica do país. É muito difícil para alguém que não tem o que comer direito em casa pensar em Matemática. Muito difícil quem não tem acesso à informação, à cultura, se interessar e se desenvolver Matemática. Para a Educação atingir um grupo grande de pessoas, outras questões têm de ser resolvidas. E acho que a gente está longe de alcançar isso”, avalia Rafael.
Ainda que não tenha passado fome, ele só conseguiu progredir em determinadas conquistas por causa das bolsas de estudo. Além da iniciação científica, graças ao seu desempenho acadêmico, garantiu auxílio para participar do disputado Programa de Verão do Impa, em 2015. O ingresso desde cedo nesse ambiente de pesquisa trouxe-o até onde está hoje, aluno da Unicamp, diz. Lá, ocupa-se dos fundamentos matemáticos da Teoria da Informação Quântica. “Eu me identifiquei demais com isso e pretendo seguir carreira acadêmica. O trabalho dos meus sonhos é ser professor e pesquisador em uma universidade, sempre com muita Matemática”, diz, contando que já cumpriu os créditos do Mestrado e deve concluir o curso no ano que vem.
Mais velho dos 12 netos, Rafael virou referência na numerosa família Santos. “Falamos para os nossos filhos: ‘se seguirem o exemplo do Rafael, vão longe”, conta Cláudia, lembrando que nunca faltou ao sobrinho vontade para o estudo. Quando vai de férias para São Gonçalo do Rio Abaixo, mata a saudade daquele “menino” que adora tocar instrumentos – clarinete, sax, violino e arranha um violão – e praticar esportes, vôlei principalmente. “Ele não estressa. E é centrado, positivo, inteligente, esforçado, feliz e, com ele, injustiça não rola. Sou fã dele”, vibra a tia.
A amiga Raquel faz coro. E diz não ter qualquer dúvida de que Matemática é a vida dele. “Não consigo imaginá-lo de outra forma que não seja como professor. Está sempre aberto e tem a capacidade de falar: ‘não sei, vou tentar’. Ele é um menino de ouro. E um gênio”. Ele desconversa. Ou melhor, diz que é importante desmistificar esse conceito. “Acho que se deve dar mais valor à dedicação, porque é isso que, a médio e longo prazos, faz a diferença e garante o sucesso de alguém”. Rafael, é exemplo disso.
*Texto retirado do livro “Histórias Inspiradoras da OBMEP
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