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26/07/2019

Um engenheiro e suas obras imateriais

Ilustração: Caio Borges_2019 

Reprodução da revista Piauí

Por Fernando Tadeu Moraes – Finalista na categoria Matemática do Prêmio IMPA-SBM de Jornalismo 2019

Poucos matemáticos carregam a distinção de terem dado uma contribuição decisiva a um campo de pesquisa, dessas capazes de mudar-lhe o curso e dividi-lo em um antes e um depois. Mauricio Peixoto, que morreu no dia 28 de abril, aos 98 anos, no Rio de Janeiro, fez isso e mais um pouco. Seu trabalho teórico, sem dúvida, “mudou a história da área de sistemas dinâmicos”, afirmou Marcelo Viana, diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o Impa, que Peixoto ajudou a fundar na década de 50, hoje um dos raros centros de excelência – em qualquer área do saber – sediados no Brasil.

Os resultados das pesquisas feitas por Mauricio Peixoto, além de impulsionar e dar vida nova aos estudos dos sistemas dinâmicos em todo o mundo, mudariam também a história institucional da matemática no Brasil: sua área de expertise se tornaria o campo em que alguns dos melhores matemáticos brasileiros, como o próprio Viana e Artur Avila, vencedor da Medalha Fields em 2014, fariam suas mais importantes descobertas. Se o Brasil tem relevância na atual geopolítica da matemática, é por causa de um acúmulo de décadas de estudos nessa área bem específica, tradição em grande medida fundada por Peixoto.

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O campo dos “sistemas dinâmicos” procura compreender a evolução de processos no tempo – como as variações climáticas cotidianas, a difusão de epidemias ou o equilíbrio dos planetas no Sistema Solar – e as sutis relações de ordem e de aparente desordem existentes na dança dos elementos interdependentes de cada um desses sistemas, sejam eles astros, células ou moléculas. Ao estudá-los, os matemáticos procuram descobrir padrões e regularidades mesmo onde a princípio só se divisa confusão – ou, inversamente, procuram mostrar como sistemas aparentemente simples e estáveis estão sujeitos a, de repente, perder qualquer regularidade, bagunçar ou se desfazer.

A origem dessas pesquisas remonta ao final do século XIX, quando alguns físicos e matemáticos, entre eles o francês Henri Poincaré, se debruçaram sobre uma questão ao mesmo tempo instigante e assustadora: O Sistema Solar é estável? Sabemos que há interações gravitacionais bastante complexas entre os planetas e satélites que o compõem, além daquelas estabelecidas entre o Sol e cada um dos corpos que se movem ao seu redor. Se esse conjunto de corpos no qual a Terra está inserida, com todas essas complexas relações de forças, sofrer algum tipo de perturbação, ele tenderá depois a voltar ao seu “funcionamento” normal? Ou a dança regular dos planetas e satélites ao redor do Sol poderia se desfazer? De modo geral, um sistema qualquer será estável, ou seja, voltará para o seu padrão de organização mesmo depois de uma pequena perturbação. Ou não – quer dizer, caso seja abalado, se desorganizará, como um sistema de planetas em que um deles é atingido por um asteroide e alguns saem voando pelo espaço, escapando de suas órbitas.

A ideia de estabilidade estrutural apareceu pela primeira vez num artigo matemático no final da década de 30, publicado por dois soviéticos, Aleksandr Andronov e Lev Pontryagin. A expressão, porém, só viria a ser cunhada em 1949, pelo americano de origem russa Solomon Lefschetz.

Peixoto topou com o conceito em 1955, enquanto fazia pesquisas na recém-criada biblioteca do Impa. Seu interesse foi imediato. Pouco tempo depois, escreveu uma carta a Lefschetz, esboçando suas ideias sobre o tema, e encarregou o matemático Leopoldo Nachbin, seu amigo, de entregá-la ao americano durante um congresso no México. Lefschetz recebeu a mensagem, se entusiasmou com o que leu e, na resposta ao brasileiro, convidou-o para passar uma temporada na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, onde lecionava. Foi em Princeton, no final dos anos 50, que Peixoto concluiu o manuscrito do seu primeiro artigo sobre estabilidade estrutural. Este e mais dois outros papers, publicados pouco tempo depois, compõem o núcleo da contribuição fundamental do brasileiro à matemática.

Um fenômeno é considerado estruturalmente estável quando pequenas alterações na lei que o descreve não produzem variações significativas em sua evolução. Marcelo Viana se vale de uma analogia culinária para aclarar o conceito: “A maioria das receitas de cozinha não desanda se formos um pouco imprecisos quanto aos ingredientes; elas são estáveis.” O mesmo se aplica a um pêndulo. Alterações diminutas em seu tamanho, peso ou forma não vão mudar o fato de que ele oscilará por um período até parar, em razão do atrito com ar.

O primeiro avanço feito por Peixoto consistiu em corrigir a definição de estabilidade estrutural existente à época – sua proposta se tornou canônica e é ensinada até hoje em livros e cursos. “Ele encontrou a definição correta”, explicou o pesquisador Benar Fux Svaiter, do Impa. “Na matemática, muitas vezes, ter a definição correta é a chave para abrir certas portas. Isso facilitou o tratamento formal de várias questões e colocou as coisas em termos tangíveis, permitindo que os matemáticos trabalhassem sobre um novo quadro conceitual.” Svaiter prepara atualmente a edição de um livro que reunirá textos selecionados do matemático.

Nos artigos seguintes, Peixoto propôs e demonstrou o teorema que entrou para a literatura matemática com o seu nome. “Basicamente ele mostrou que fenômenos que podem ser descritos em superfícies como a esfera, ou seja, por meio de duas variáveis, são praticamente todos estruturalmente estáveis. Num linguajar mais moderno, dizemos que sistemas com dois graus de liberdade não são caóticos”, não vão se desorganizar definitivamente ao sofrerem pequenas perturbações, explicou Viana. “E por que isso é importante? Porque na análise de qualquer fenômeno físico busca-se encontrar leis que sejam estruturalmente estáveis. Essa caraterística é algo comum? É incomum? O teorema de Peixoto vai nos dizer que, para sistemas com dois graus de liberdade, isso vai acontecer essencialmente sempre.”

Segundo o diretor do Impa, além de provar um grande resultado, Peixoto também impulsionou a área de sistemas dinâmicos, ao inspirar o americano Stephen Smale, um dos maiores matemáticos do século XX, a se debruçar sobre ela. Em The Mathematics of Time, Smale descreve seu encontro com o brasileiro, ocorrido na Universidade de Princeton: “Por volta de 1958, eu conheci Mauricio Peixoto. Nós fomos apresentados por Elon Lima, que terminava seu Ph.D. com Ed Spanier [na Universidade de Chicago] […], e ele me mostrou seus resultados sobre estabilidade estrutural em duas dimensões. Fiquei imediatamente entusiasmado, não somente pelo que ele estava fazendo, mas também pela possibilidade de, usando meu conhecimento em topologia, generalizar seu trabalho”, ou seja, torná-lo válido para outras dimensões, maiores do que a de superfícies como a esfera.

“A partir daí, a coisa deslanchou”, resumiu Viana.

O encontro também renderia frutos ao Impa e à matemática brasileira. A convite dos brasileiros, Smale passou seis meses do ano de 1960 no instituto carioca. Nesse período, provou resultados que lhe dariam, em 1966, a láurea mais prestigiosa da disciplina, a Medalha Fields, e que tiveram como efeito colateral colocar o Impa e o Rio no mapa da matemática mundial.

O pesquisador brasileiro que havia inspirado Smale, contudo, logo perderia o bonde do desenvolvimento da área. “Após essas duas intervenções críticas, eu diria até históricas, o papel do Mauricio em sistemas dinâmicos tornou-se sobretudo simbólico”, contou Viana.

Cumpriu-se assim o vaticínio do amigo e mentor Lefschetz, narrado pelo próprio Peixoto em seu discurso ao receber o prêmio da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, em 1987, em Pequim. Ao se queixar ao americano de que ninguém se interessava pelo tema da estabilidade estrutural, o brasileiro ouviu o seguinte: “Não, Mauricio, isso não é problema, é sorte sua. Trate de trabalhar o mais rápido e duramente que puder nesse assunto, porque virá o dia em que você não vai compreender uma só palavra do que eles estarão dizendo sobre estabilidade estrutural. Isso aconteceu comigo em topologia.”

O pioneirismo de Peixoto fez dele um exemplo incontornável para os pesquisadores do país, assegurou Viana. “Imagine a dificuldade que era ser um matemático no Brasil dos anos 50. Aí aparece um sujeito que, com uma formação limitada, sem orientação de ninguém e estudando numa biblioteca recém-criada, escolhe e resolve um problema importante, adquirindo, assim, reconhecimento internacional. Isso só pode servir de inspiração.”

Mauricio Matos Peixoto nasceu no dia 15 de abril de 1921, em Fortaleza. Aos 9 anos, aportou no Rio de Janeiro com toda a família, após o pai, governador do estado do Ceará, ser deposto pela Revolução de 1930. Na então capital federal, foi aluno do Colégio Pedro II e, mais tarde, da Escola de Engenharia da Universidade do Brasil.

O interesse de Peixoto pela matemática, curiosamente, surgiu após ele ter sido reprovado na disciplina, aos 11 anos. “Eu vim do Ceará para o Pedro II extremamente fraco em matemática e, no fim do ano, fui reprovado”, contaria, anos mais tarde. Um amigo da família, aluno da escola de engenharia e também cearense, ajudaria o rapaz a se preparar para fazer o exame de segunda época. “Começamos da estaca zero, e fiquei deslumbrado com as aulas; já nessa época decidi que iria estudar alguma coisa que envolvesse matemática”, afirmou numa entrevista que integra o livro Impa 50 Anos.

Mais tarde, na faculdade de engenharia, ficou amigo de Leopoldo Nachbin, que viria a se tornar um dos maiores matemáticos do país. Foi também nessa época que conheceu Marília Chaves, sua primeira mulher, com quem se casou em 1946.

Surpreendentemente, o homem que mudou a história dos sistemas dinâmicos não só não era formado em matemática como nunca concluiu um doutorado na área. Peixoto chegou a iniciar o curso na Universidade de Chicago, em 1949, mas desistiu da formação ao prestar um concurso para professor na Escola de Engenharia – e ser aprovado. Começaria a dar aulas na instituição em 1952. “Nunca me arrependi de ter largado o doutorado, porque uma cátedra na Universidade do Brasil era muito difícil de aparecer, pois era vitalícia; não era oportunidade que se desperdiçasse.”

No mesmo ano em que se tornou catedrático, fundou, com Nachbin e Lélio Gama, o Impa. No livro sobre o cinquentenário do instituto, um de seus primeiros pesquisadores, Elon Lima, apontou o que, em sua opinião, diferencia o centro carioca de instituições congêneres. “No Impa, seus pesquisadores sempre tiveram uma visão de que não é preciso aprender uma barbaridade de matemática para fazer pesquisa de alto nível, pesquisa significativa. Pode-se deixar de lado muitos formalismos, teorias gerais, abstratas e complexas, e se concentrar em problemas relevantes, básicos, e mesmo assim ter sucesso – o maior exemplo disso é o professor Mauricio Peixoto.”

Tal atitude com relação à matemática, segundo Lima, contrastava com a de Nachbin, a outra grande referência da instituição em seus primórdios. “O professor Nachbin tinha uma visão um pouco diferente, porque tinha uma formação mais ao estilo francês, ou seja, tinha que aprender montes de coisas […]. [Ele via a] matemática como um sistema formal, enquanto Mauricio tinha uma visão mais próxima da de um engenheiro. [Mauricio] Fazia matemática pura, mas com uma visão bem mais clássica. E com isso teve um êxito considerável. No Impa terminou prevalecendo a visão do Mauricio.”

Soma-se a esse pragmatismo matemático o compromisso intransigente com a excelência. “Ele poderia muito bem ter feito uma matemática meia-boca”, imaginou Viana. “Que controles havia na época? Que competição? Nada disso existia. Mas ele optou pelo caminho da qualidade. Esse exemplo contaminou a instituição desde o início.”

Tal característica já se encontrava presente na primeira tese de doutorado que Peixoto orientou no Impa – a primeira também defendida no instituto –, no começo dos anos 60. O trabalho realizado por Ivan Kupka deu origem ao Teorema de Kupka-Smale, outro importante resultado na área de sistemas dinâmicos. “Foi uma belíssima maneira de uma instituição começar a formar alunos”, declarou Viana. “O Mauricio colocou o sarrafo lá em cima.”

Embora tenha passado a maior parte de sua vida acadêmica ligado ao Impa, Peixoto também teve alguns períodos de atuação profissional longe da instituição, como as temporadas na Universidade Brown, nos Estados Unidos (1964-68), e na Universidade de São Paulo (1973-78), além de uma passagem pela presidência do CNPq, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (1979-80). Ocupou ainda a presidência da Sociedade Brasileira de Matemática (1975-77) e a da Academia Brasileira de Ciências (1981-91). Em 1974, tornou-se o segundo brasileiro convidado para ser palestrante no Congresso Internacional de Matemáticos, o evento mais importante da disciplina, realizado de quatro em quatro anos desde 1897. A primazia coubera a Nachbin.

Foi também durante os anos 70, em São Paulo, que Peixoto aproximou-se da matemática Alciléa Augusto, que estudara no Impa em 1962 e 1963 sob sua orientação. Ela descreve o marido como um homem ponderado, sereno, de hábitos simples, que preferia ouvir a falar e gostava da companhia dos mais jovens. “Era comum chegar em casa entusiasmado, falando de algum encontro que havia tido no Impa.” Até poucos meses antes de morrer, Peixoto continuou a frequentar a instituição, onde mantinha um gabinete de trabalho.

Sua longevidade intelectual foi espantosa. Produziu matemática e escreveu artigos até os 93 anos. “Ele trabalhava duro, muitas vezes varando a madrugada”, lembrou sua mulher. A dedicação era equivalente à ambição científica. Viana conta que, em 2010, assumiu a tarefa de preparar o volume dos trabalhos selecionados de Peixoto, uma homenagem aos seus 90 anos. “Quando apresentei a ideia a ele, achei estranho, porque não pareceu empolgado”, lembrou. “Eu o abordei uma segunda vez, no Impa, e ele fez de tudo para fugir do assunto. Quando insisti, numa terceira vez, veio a surpresa. Disse que, claro, estava feliz e agradecido pela homenagem, mas perguntou se não seria possível esperar mais um ou dois anos, pois estava escrevendo um artigo que seria o cume de sua obra.” O último trabalho de Peixoto foi publicado em 2014. O livro que Viana não conseguiu concluir em 2010, hoje sob os cuidados de Benar Fux Svaiter, deve sair nos próximos meses, pela prestigiosa editora Springer.

Além de fórmulas e números, Mauricio Peixoto apreciava literatura e música clássica. “Ele amava as cantatas de Bach e as sinfonias de Beethoven”, contou Alciléa. Também admirava a poesia, sobretudo a de Carlos Drummond de Andrade e Rainer Maria Rilke. Seu outro prazer era passar os fins de semana no sítio que possuía na zona rural de Petrópolis. “Lá ele se transformava. Caminhava o dia inteiro pela propriedade, abria estradas e chegou a construir uma casa quando já tinha mais de 80 anos. Ele amava árvores, e plantou no sítio milhares de eucaliptos, pois era a espécie que aquela terra suportava melhor.”

Na região onde fica o sítio, conhecida como Estrada dos Contrões, Peixoto financiou a construção de uma pequena instituição de ensino com o dinheiro que ganhou em 1969 do Prêmio Moinho Santista. A Escola Municipal Marília Chaves Peixoto, inaugurada em 1971 e cujo nome homenageava sua primeira mulher – morta precocemente em 1961 –, funcionou durante quarenta anos. “Durante todo esse tempo, o Mauricio providenciou a presença de uma professora ali. Ele tinha uma obsessão pessoal por melhorar a educação básica. Naquela época havia muitos analfabetos na região, o colégio mais próximo ficava a cerca de 10 quilômetros”, afirmou Alciléa. Embora o espaço não seja mais usado como escola, continua à disposição da comunidade. Hoje, funciona ali a Associação da Microbacia do Brejal, que cuida da preservação das nascentes locais.

O estado de saúde de Peixoto piorou de forma repentina no início deste ano. “A partir de fevereiro, ele começou a ficar mais cansado e menos interessado nas coisas”, disse Alciléa. Foi internado – pela primeira vez na vida – em meados de março. Em 17 de abril, voltou ao hospital, onde morreu onze dias depois. Deixou, além da mulher, quatro filhos e oito netos.

Desde a juventude, falava que gostaria de estudar música, mas nunca conseguiu realizar o desejo. “Agora no finzinho nós voltamos a conversar sobre a possibilidade de ele fazer aula de piano”, contou sua mulher. Não deu tempo. No dia da morte de Mauricio Peixoto, um de seus netos escreveu, num texto dedicado ao avô: “Mesmo você tendo vivido 98 anos, acho que não foi o bastante.”

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