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14/04/2020

'Isolar assintomáticos teria efeito de imunidade de rebanho'

Claudio Struchiner

Área de intersecção entre a medicina, biologia e matemática, a epidemiologia vem atraindo grande interesse da sociedade diante da pandemia do novo coronavírus. Temas como como curvas de contágio, índice R0 e imunização de rebanho, mencionados diariamente na imprensa, ganham espaço nas discussões populares, em busca de vislumbrar cenários para a doença. 

Mestre pelo IMPA e doutor em saúde pública pela Universidade Harvard, o epidemiologista da EMAp-FGV Claudio Struchiner afirma que identificar e isolar os indivíduos assintomáticos transmissores da Covid-19 teria efeito de imunidade rebanho. Um dos empecilhos para a realização desta medida é o baixo grau de detalhamento dos testes. “Dados como estes são cruciais, mas ainda não há um teste que permita identificar estas várias categorias epidemiológicas”, aponta.

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Em entrevista ao instituto, o pesquisador fala também sobre o uso de ferramentas matemáticas na área, iniciado pelos estudos do ciclo de transmissão da malária do médico inglês Ronald Ross. Replicado até hoje, o modelo é usado por Struchiner no estudo inédito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apoiado pelo governo do Rio Grande do Sul e o Instituto Serrapilheira. A etapa inicial do projeto vai investigar o número de infectados pelo vírus no RS, testando 18 mil pessoas. A ideia é reproduzir o estudo em nível nacional.

“É um projeto importantíssimo, onde conseguiremos ter uma uma ideia da imunidade de rebanho já atingida. É uma primeira tentativa, com um grupo de epidemiologias bastante conhecido, de alta qualidade. Vamos modelar os dados coletados pelo grupo de Pelotas”, comenta.

IMPA: Quais são as principais ferramentas da matemática utilizadas na epidemiologia?Claudio Struchiner: A principal ferramenta na  versão moderna do uso da matemática são os sistemas de equações diferenciais. A aplicação surge no início do século passado, com o médico inglês Ronald Ross, que ganhou o Prêmio Nobel em medicina por sua descrição do ciclo de transmissão da malária, na qual identificou o mosquito como o vetor da doença. Foi o pontapé inicial para as modelagem modernas. Um dos resultados mais importantes foi a descoberta de que a doença poderia ser controlada pelo controle do vetor, o que não era claro na época. Diminuindo sua transmissão até certo ponto, ela poderia desaparecer. Quando o pesquisador inglês George Macdonald entrou em cena, surge o modelo Ross-Macdonald, que foi usado de base para guiar as ações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no combate à malária utilizando um inseticida chamado DDT. Este modelo hoje serve de base para as suas variantes.

IMPA: Em que medida o mestrado no IMPA contribuiu para a sua formação na área?

CS: O mestrado no IMPA foi fundamental para mudar o caminho da minha trajetória. Durante a faculdade de medicina, comecei a trabalhar em neurofisiologia no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fiquei durante vários anos da graduação. As atividades científicas e discussões que ocorriam no laboratório tinham uma base físico-química muito grande, e ficou clara a necessidade de uma formação mais quantitativa para que eu pudesse digerir melhor os textos. Leny, esposa do Manfredo do Carmo, trabalhava comigo no instituto e me levou a ele, que me aceitou como aluno de iniciação científica no IMPA. Não tinha nenhum treinamento em matemática anterior, então cumpri os créditos a duras penas. Percebendo o potencial da disciplina, optei por fazer o mestrado em probabilidade e estatística do instituto, sob orientação do Manfredo.

IMPA: Nesta época você já pensava em se tornar epidemiologista?

CS: Vivia um conflito interno muito grande, porque tinha muito interesse em neurofisiologia mas me sentia egoísta em trabalhar com uma especialidade muito restrita, enquanto as demandas sociais do país eram outras. Resolvi fazer uma mudança na trajetória, me direcionando para uma área que tinha problemas que naquela época eu percebia como mais ligados à realidade brasileira. O curioso é que, em neurofisiologia, eu trabalhava com um fenômeno populacional, onde a população eram células nervosas. Na área de epidemiologia, também trabalhamos com um componente populacional ditando a dinâmica. Então, na verdade não mudei tanto de área, porque a natureza dos fenômenos é muito parecida.

IMPA: Há quem diga que é mais fácil um matemático aprender sobre Saúde para trabalhar com epidemiologia do que ensinar matemática a um médico. Você concorda com essa afirmação? Como costuma ser a formação acadêmica dos epidemiologistas? A faculdade de Medicina dá uma base forte para esta área, hoje tão fundamental?

CS: Cada disciplina tem suas particularidades. É muito diferente escrever as equações que descrevem a dinâmica de transmissão da malária tendo em mente os doentes que eu tive a oportunidade de tratar e conhecer. A experiência do contato direto com a doença e os doentes é fundamental para trazer um pouco de alma e sensibilidade às equações. Existe uma certa tendência das pessoas se encantarem pelos aspectos matemáticos, que são uma simplificação de um sistema muito mais complexo, que tem sutilezas no seu processo de evolução. O modelo Ross-Macdonald, por exemplo, não levou em conta o componente do desenvolvimento da resistência dos mosquitos. Por causa disso, a malária não foi erradicada naquela época utilizando o inseticida DDT. A natureza tem uma série de respostas que não estão previstas inicialmente nestes modelos.

IMPA: De que maneira a matemática (ou modelagens) pode(m) ajudar a conter a Covid-19 e outras epidemias?

CS: A matemática é uma forma de representação de uma série de ideias e estratégias de como se dá a difusão de um fenômeno na natureza. Hoje em dia, passou a ser a linguagem principal de representação do pensamento científico nas suas várias versões: determinística, estocástica e computacional. É praticamente impossível interagir com outros pesquisadores e descrever seu trabalho sem a utilização de alguma destas ferramentas de uma forma mais ou menos intensa em todas as áreas.

IMPA: Qual é a principal dificuldade em se fazer modelagem epidemiológica do coronavírus no Brasil? Alguns especialistas falam em lacunas nos dados e em dados muito agregados, informados pelas autoridades.

CS: A dificuldade começa no fato de ser um vírus novo cuja biologia não é muito conhecida. As informações biológicas sobre como é a evolução da infecção no organismo são desconhecidas e existe uma diferença em como ela ocorre nos vários países, raças e condições sociais. Não se sabe, por exemplo, quanto tempo um indivíduo permanece como transmissor, e nem se os indivíduos assintomáticos são transmissores. Dados como estes são cruciais, mas ainda não há um teste que permita identificar estas várias categorias epidemiológicas. Além disso, temos o problema de notificação dos sistemas de vigilância, onde costumam ocorrer dois problemas básicos, a subnotificação e o atraso de notificação. Todos estes elementos contribuem para a dificuldade no desenvolvimento de modelos que permitiam a discussão da evolução desta epidemia.

IMPA: Alguns termos da epidemiologia – como curva de contágio, índice R0 e imunidade de rebanho – estão se tornando mais populares nas últimas semanas. Existe um interesse geral em vislumbrar possíveis cenários de contágio. Sabemos que os estudos que fazem projeções de números de casos são bastante dinâmicos, e que as premissas criadas por eles variam com o tempo e o comportamento da sociedade, podendo gerar resultados distintos. Você acredita que a mudança dos resultados das projeções pode eventualmente causar uma descrença na população?

CS: Assim como as previsões climáticas, econômicas e de todas as áreas, estas projeções também têm seu grau de incerteza. Não é comum que pesquisadores divulguem o número de previsões certas e erradas que realizaram dentre todas as outras, mas a necessidade de expressar a incerteza sobre as afirmações que são feitas é fundamental. Neste quesito, a liderança têm sido dos modeladores de clima, porque com toda a discussão política sobre o tema, é de extrema importância para eles descrever detalhadamente o grau de incerteza de suas previsões. Na economia, o vencedor do Nobel Paul Krugman, reuniu todas as previsões publicadas em sua coluna no New York Times identificando quais acertou e quais errou. Normalmente, o modelador publica o seu trabalho e depois se desconecta daquilo. Mas deveria haver um compromisso para que pudéssemos ter os dados das incertezas e responder a esta pergunta de uma forma mais empírica.

IMPA: Para estabilizar a situação mundial da pandemia, fala-se em vacinas, remédios e imunização de rebanho. Qual destas três alternativas é a mais realista? Quanto tempo é realístico imaginar para a execução de cada uma delas (vacinas, remédios e imunização de rebanho)? 
CS: Vacinas são processos longos. Nesta epidemia em particular, em um cenário muito otimista, a produção de uma vacina levaria 18 meses. No desenvolvimento de remédio, se tem duas estratégias diferentes. Uma é a de reposicionamento de remédios já existentes como anti-virais e até a cloroquina. No caso da droga não ser registrada, ela precisa passar por um longo caminho de determinação da sua segurança até que ela possa ser testada em seres humanos, o que pode levar o mesmo tempo que a criação de uma vacina. Outra ferramenta seria o desenvolvimento de testes baratos e rápidos que pudessem identificar as categorias epidemiológicas nos indivíduos. Se conseguíssemos identificar os assintomáticos transmissores, por exemplo, poderíamos colocá-los em quarentena e isso teria o mesmo efeito de uma imunidade de rebanho.

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No Blog de O Globo, a história da epidemiologia matemática