Como a falta de verba do CNPQ ameaça a produção científica
Reprodução da reportagem da revista Época
Por Daniel Salgado e Filipe Vidon
Quase 85 mil pesquisadores podem ficar sem bolsas a partir de outubro por conta de um déficit orçamentário de R$330 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). João Luiz Filgueiras de Azevedo, presidente da instituição, alertou para a situação no início da semana passada. A possibilidade coloca em risco o trabalho desenvolvido em universidades, departamentos, laboratórios e institutos de todas as áreas do conhecimento.
Para entender a dimensão do caso, ÉPOCA falou com professores e pesquisadores de instituições de ensino superior públicas — que são responsáveis pela maior parte da pesquisa científica no país —, para que descrevessem seus trabalhos e falassem da importância do CNPq para a continuidade de suas atividades.
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Matemática
Uma das instituições que pode ser afetada é o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o IMPA. Fundado em 1952 pelo próprio CNPq — hoje está sob a alçada do Ministério da Ciência e Tecnologia — o IMPA é um dos principais centros de pesquisa de matemática do mundo, atraindo pesquisadores brasileiros e estrangeiros, além de promover simpósios, seminários e programas de divulgação científica para a sociedade.
“Temos 49 bolsistas de doutorado pelo CNPq e 25 de mestrado. São jovens adultos para quem a bolsa é um salário. E estão com risco de as perder e não poder terminar os estudos. Todas as nossas áreas são dependentes desse financiamento”, explica o professor Marcelo Viana, diretor da instituição de pós-graduação que conta com 47 pesquisadores plenas e cerca de 150 alunos que realizam pesquisas em 11 áreas da matemática.
Nas salas do instituto, que fica no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, professores e alunos se debruçam sobre algumas das questões mais complexas da matemática. Ainda que sejam por vezes abstratas, há linhas de pesquisas sobre temas como computação gráfica, que impacta diretamente a indústria de cinema e televisão; dinâmica de fluídos, que envolve a criação de modelos matemáticos altamente complexos e gera tecnologia para extração de líquidos como o petróleo; e os sistemas dinâmicos, área de pesquisa de Viana e que cria modelos matemáticos para analisar como um fenômeno ou objeto se desenrola ao longo do tempo e do espaço.
Segundo Viana, apesar de se tratar de uma “área econômica” por necessitar de poucos equipamentos, a matemática avançada é bastante afetada pelas bolsas. Mesmo com o orçamento advindo do Ministério da Ciência e da Tecnologia e do Ministério da Educação (MEC), o IMPA precisa do CNPq para poder reter seus alunos em dedicação exclusiva:
“A contribuição do CNPq também é essencial. Sem ela, não temos alunos. E sem os alunos o IMPA não seria o IMPA”, explica. Viana reforça, porém, que a quantidade de projetos têm diminuído por conta de uma redução de recursos na instituição e pelo congelamento do valor das bolsas. “Isso faz com que muitos alunos desistam de fazer pós graduação em uma carreira da ciência.”
Biologia
O impacto do CNPq não se limita à matemática ou aos institutos de pesquisa como o IMPA. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), departamentos com conceito nota 7 no Capes (o mais alto possível) também são dependentes das bolsas.
É o caso do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular (PPGBCM) do Centro de Biotecnologia da universidade, onde ¼ dos doutorandos e mestrandos recebem as bolsas para desenvolver pesquisas em 15 departamentos. Lá trabalham 38 pesquisadores chefes, 9 pós doutorandos, 60 doutorandos e 60 mestrandos, que dão continuidade a trabalhos desenvolvidos há dez anos.
Segundo Hugo Verli, coordenador do programa, se confirmado o corte do CNPq, o valor das bolsas não pagas chegaria a R$152, o que se somaria aos demais cortes à pesquisa gerando um impacto de R$450 mil reais ao PPGBCM só em 2019. Neste momento, a compra de insumos para o desenvolvimento do trabalho dos laboratórios já foi consideravelmente afetada por conta dos repasses reduzidos.
As medidas botam em risco a continuidade das pesquisas de uma série de áreas como a agropecuária, a saúde pública e a biologia. Entre os resultados já obtidos pelo PPGBCM estão a descoberta de um inibidor da doença de Parkinson e de compostos naturais capazes de reverter doenças causadas por fungos no pulmão e no cérebro.
Do outro lado do país, um departamento mostra a realidade da rotina sem bolsas de estudos e a resiliência dos profissionais da área. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), os professores Márcio Viana Ramos e Nylane Maria Nunes, respectivamente do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular e da Faculdade de Medicina, coordenam uma pesquisa para o tratamento de lesões causadas pela hanseníase.
Ao longo dos oito anos da pesquisa que formou dois doutores e dois mestres, o grupo foi capaz de desenvolver uma biomembrana para a cura das feridas causadas pela doença e que foi testada com sucesso em 12 pacientes. Com a tecnologia, lesões abertas há cinco anos podem ser cicatrizadas após um tratamento de 60 dias. O objetivo é validar o uso do tratamento para o SUS.
Apesar dos resultados animadores, a pesquisa do grupo de Biotecnologia Molecular de Látex Vegetal está ameaçada. Além da falta de orçamento para compra de materiais como luvas, algodão e EPIs, o professor Márcio Viana teme que os alunos percam o estímulo de continuar na área por falta de bolsas. Sem qualquer financiamento de bolsas do CNPq desde os contingenciamentos de gastos do órgão, alunos chegam a ter de dirigir os próprios carros por longas distâncias para atender pacientes.
“Os valores das bolsas que financiam os trabalhos dos alunos e pesquisadores estão extremamente defasados e sem reajustes”, explica Viana. “E isto desestimula a parte principal do sistema que é o ser humano”.
Química
Mesmo quem ainda não foi afetado pelos cortes diretamente demonstra preocupação com as notícias em torno do CNPq. É o caso de Cláudio Cerqueira Lopes, professor do departamento de Química da UFRJ, que coordena o Laboratório de Síntese e Análise de Produtos Estratégicos (Lasape) com a professora Rosangela Sabbatini Cappella Lopes.
Fundado em 1993 e tendo formado 25 mestres e 16 doutorados, o laboratório pesquisa a criação de uma série produtos como o luminol — que identifica sangue nos ambientes e é muito utilizado pelas Polícias Militar e Civil, a quem o Lasape atende frequentemente —, biocidas de água de lastro, reagentes para descoberta da presença de drogas e até métodos de dessalinização da água. Segundo Lopes, tudo acontecendo por conta dos três doutorandos, três graduandos e o pós-doutor associados ao projeto, que recebem bolsas do CNPq e CAPES.
“Nosso propósito é o da química social. Se a Polícia Civil pede 300 kits de luminol, que podemos oferecer a um preço muito mais acessível do que do mercado, quem os cria são os alunos. Sem eles, o projeto degringola e não poderemos dar conta da demanda”, explica Lopes, que destaca que o laboratório também pesquisa métodos de utilização do luminol para identificar sangue em ambientes hospitalares. A prática, que já foi adotada na Holanda e nos EUA, pode ajudar a reduzir as contaminações hospitalares que matam cerca de 100 mil brasileiros ao ano.
A situação preocupa o restante do departamento de química, como explica seu diretor Cláudio Mota. Segundo ele, são cerca de 50 pesquisadores do IQ que recebem bolsas no CNPq entre os departamentos de desenvolvimento de fármacos, biocombustíveis e bioprodutos, além de química forense, além de pesquisas em áreas como a química ambiental e mudanças climáticas.
“Ainda não tivemos notícia de suspensão das bolsas. Mas o corte de verbas põe em risco a continuidade do pagamento”, explica Mota, que destaca que algumas bolsas da Instituição foram terminadas neste ano no período entre a formatura e a entrada de novos alunos para a pesquisa, o que levou a uma “situação delicada para o programa de pós-graduação”.
Pesquisadores também foram afetados pela não entrega de recursos aprovados em editais. O CNPq também financia pesquisas e, segundo Mota, o repasse parcial da verba fez com que parte dos projetos ficasse sem insumos e equipamentos.
Humanas
As ciências humanas também padecem com a falta de financiamento, como demonstra o caso da professora Daniela Fávaro Garrossini, da Universidade Federal de Brasília (UNB) — que, ao lado da UFBA e UFF foi uma das primeiras a ter cortes anunciados pelo MEC, em abril.
Coordenadora do programa de pós-graduação em design da UNB, Garrossini conta que teve as bolsas do CNPq cortadas com a exceção de um aluno bolsista do PIBIC (um programa associado ao CNPq).
“Todos os alunos envolvidos de graduação e pós-graduação não têm possibilidade de bolsas. A maioria é voluntária e não temos recursos”, explica Garrossini. Ela e seus alunos fazem parte de uma rede internacional de pesquisa sobre Tecnopolítica — que estuda como os grupos e movimentos sociais se organizam e como suas redes se formam — composta de universidades da Espanha, Chile, Portugal, Holanda e Itália. “Eles têm fomento e recursos. Aqui temos que pagar tudo do bolso, até ligação telefônica e viagem”.
Mesmo com sete professores de áreas como Engenharia Ambiental, Física e Gestão de Política Pública, a pesquisa sobre a tecnopolítica e o ativismo na questão da água não tem conseguido captar recursos. Ainda assim, há cinco graduandos e dois mestrandos no projeto.
O CNPQ
Procurado pela reportagem, o CNPq disse que a situação orçamentária da instituição ainda é a mesma. Com a manutenção da Lei Orçamentária Anual e o déficit de R$330 milhões, o CNPq diz: “Não havendo a recomposição orçamentária, não haverá recursos para pagamentos das bolsas a partir de outubro (com a folha de pagamento de setembro)”.
Em nota, o CNPq disse também estar tentando reverter a situação em “esforço conjunto ao Ministério da Ciência e Tecnologia”. Entre as medidas estão a “suspensão temporária da implementação de novas bolsas para minimizar o impacto desse déficit orçamentário e que têm sido divulgadas amplamente em nossas redes”.
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