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09/05/2019

Reportagem destaca pesquisa científica na área de Humanas

Reprodução
de O Dia+

Por Mariana Lima – Menção honrosa na categoria Divulgação Científica do Prêmio Impa-SBM de Jornalismo 2018

Responda rápido: quando alguém fala “pesquisa científica”, que imagem vem à sua mente? Em geral, é aquela de um cientista no laboratório, com microscópio, béquer misturando elementos químicos do qual sai “fumaça” e coisas do tipo. Ou então, alguém lidando com máquinas, lasers e robôs. Poucas pessoas iriam mentalizar um homem ou mulher debruçado sobre questões essenciais do comportamento humano, procurando respostas em Educação, História, Letras ou Literatura.

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Todos são cientistas, todos aplicam o método científico para realizar uma experiência, a fim de produzir um novo conhecimento ou interagir com conhecimentos pré-existentes. Esta falha na observação por parte do grande público traduz-se também dentro do próprio mundo acadêmico, onde a rivalidade entre campos diferentes – um comportamento que não é estranho ao ser humano vivendo em sociedade – acaba por levantar paredes e falsos degraus, separando os pesquisadores em um ranking de “a minha ciência vale mais que a sua”. Duvida? Confira o vídeo abaixo.

O vídeo é do seriado The Big Bang Theory (A Teoria do Big Bang), a mais bem-sucedida série de comédia hoje nos Estados Unidos e transmitida para diversos países do mundo pela TV a cabo. Há dez anos no ar, traz as agruras e aventuras de um grupo de cientistas brilhantes, tendo reais cientistas e professores universitários como consultores da equipe de produção – sem falar na própria atriz Mayim Bialik, que é neurocientista com PhD pela University of California, Los Angeles (UCLA) e contracena com Jim Parsons no trecho apresentado como sua namorada, Amy Farrah Fowler. Apesar do exagero do humor, a cena reflete uma separação entre as Ciências Exatas e Biológicas e as Ciências Humanas presente em centros acadêmicos de todo o mundo, como se as Artes Liberais, tão desprezadas pelo personagem Sheldon Cooper, não fossem uma área de conhecimento solidificada e de importantes contribuições para a compreensão da própria natureza humana e suas relações de poder.

No seriado, Sheldon Cooper é um físico teórico. Foi também na Física, na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que este descontentamento com as Humanidades foi sentido de uma forma bastante real e abrupta pela professora Lenilda Austrilino, na década de 1990, quando decidiu fazer seu doutorado em Educação, após graduação e mestrado em Física. Esta era uma vontade antiga da professora, desde sua pesquisa para obter o título de Mestra, e tomou forma como uma ruptura com a visão acadêmica de que só existe pesquisa na área de Exatas.

Arte: Thalita Chargel

“Solicitar meu afastamento para fazer o doutorado em Educação desestabilizou o Departamento de Física e a maioria dos docentes da época foi contra meu afastamento. Me inscrevi em um programa de doutorado institucional através de um convênio entre o CEDU/Ufal [Centro de Educação da Ufal] e a PUC/SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo], uma vez que não era necessário afastamento das funções docentes. Hostilizada por alguns professores do Departamento de Física devido a minha opção, fui acolhida e migrei para o CEDU, participando do grupo que criou o Mestrado em Educação, atuando até minha aposentadoria”, contou Lenilda Austrilino, que hoje ainda atua na universidade, como voluntária no Mestrado Profissional em Ensino na Saúde.

Professora Doutora em Educação em 1999, Lenilda dedicou-se com mais afinco à difusão e popularização das Ciências em Alagoas a partir de 2004, através de um projeto com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) chamado ‘Caravana de Ciência, Tecnologia e Inovação’, que reuniu uma equipe multidisciplinar de professores e jovens universitários em iniciação científica para percorrer as cidades interioranas e fazer contato com crianças e adolescentes da rede pública de ensino.

Com os jovens, ela não teve trabalho em fazer entender que todas as áreas do conhecimento humano são campos passíveis de estudo e produção científica. “Certa ocasião, organizamos um grupo de pesquisa com estudantes do ensino médio visando introduzi-los ao mundo da pesquisa estimulando-os ao gosto pela ciência. Eles tinham uma bolsa de pesquisa do Programa de Bolsa de Iniciação Científica Júnior (PBICJR) voltado para o ensino médio e apoiado pela Fapeal. Durante um ano eles tiveram orientação para pesquisar, seguindo as etapas metodológicas estabelecidas para a área de Ciências Humanas. Visitaram museus, fizeram entrevistas com professores de diversas áreas do conhecimento, pesquisaram documentos e sistematizaram as informações obtidas”, ponderou.

A pesquisa desses jovens resultou na exposição “Ciências em Alagoas: conexões entre Ciências, Literatura e Arte”. Vitória de um lado, reconhecimento de que outras batalhas ainda estão por vir do outro. Uma pesquisa realizada em 2015 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) sobre a percepção pública em ciência identificou que é alto o interesse dos brasileiros por Ciência e Tecnologia (C&T), justificado pelo fato de serem vistas como instrumentos que geram resultados capazes de solucionar problemas de suas vidas.

Devido a essa visão utilitarista, a população percebe mais os resultados das pesquisas em áreas como Tecnologia e Saúde do que na Educação, argumenta Lenilda Austrilino. “Os objetos de estudos e a maneira de responder às questões da Física e da Educação são diferentes. As Ciências Exatas focam na resolução de problemas que geralmente requerem o uso de expressões quantitativas para obter seus resultados. Em Educação, buscamos compreender comportamentos, atitudes e as diversas relações entre seres humanos e o ambiente em que vivem”. Mas as diferenças param por aí. “Os pesquisadores de ambas as áreas buscam compreender fenômenos e explicá-los desenvolvendo instrumentos adequados ao problema a ser estudado”.

Foto: Ascom Fapeal/ Arte: Thalita Chargel

Ranking velado

Belmira Magalhães é socióloga formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestra e Doutora em Letras e Linguística pela Ufal, onde fez extensa carreira como professora e pesquisadora. Voltou à UFF em 2008 para seu Pós-Doutorado (PhD), também em Letras e Linguística, e, em 2015, após 35 anos de trabalho, defendeu seu memorial acadêmico e tornou-se professora titular da Ufal.

Experiência e sagacidade de observação do cenário acadêmico em diferentes regiões do país que a fazem afirmar sem ao menos piscar: sim, há um ranking entre as disciplinas e pesquisas na universidade.

“Embora seja velado no sentido da palavra ranking, ele se dá efetivamente. [Está] Nas agências de fomento, para que a gente consiga suporte para fazer as pesquisas, onde as metodologias de Exatas e Biológicas são o padrão utilizado na elaboração de projetos. No material, que o nosso é conhecido como obsoleto e barato ou que não precisa ninguém dar. A única área de exceção que conheço, em Letras, é a de Fonética e Fonologia que, por causa do som, consegue materiais caríssimos – temos alguns deles na Ufal. Mas [como] a maioria das pesquisas de Humanas não precisa disso, então não há nem chamada”, afirmou Belmira Magalhães.

Uma das principais críticas usadas pelos detratores da pesquisa científica em Humanas é de que ela não é capaz de ter objetividade, seja pela impossibilidade de repetir experimentos ou teses e obter o mesmo resultado, ou pela contaminação ideológica do cientista-autor, argumento que Belmira rebate com veemência.

“O que nós não temos, nem eles, é ausência de ideologia. Toda pesquisa é ideológica, a da área humana e a das outras. Vou dar um exemplo: por que, até hoje, a ciência não descobriu uma forma de um exame ginecológico da mulher não ser tão traumático? Porque não interessa, porque são mulheres. Não é para padecer no paraíso? Nós pensamos as pessoas em Marte, então temos a tecnologia [para um exame menos invasivo], o que não tem é a ideologia para pensar o melhor bem-estar do ser humano”.

“Quando você manda um projeto [de pesquisa para submissão] e a sua ideologia – ideologia política ou pensamento em geral – está muito clara, isso cria um problema, seja onde for. Nós temos objetividade mesmo tendo ideologias. Por exemplo, eu trabalho em várias áreas e uma delas é a feminista, faço pesquisa sobre a questão da mulher. Quando eu vou fazer pesquisa, eu quero saber a verdade, não quero que a minha posição seja o que eu vou ver no mundo”, arrematou, de forma simples, direta e – sim – objetiva.

Reflexo da estrutura do poder

“Essa preocupação sua jamais caberia em 1955, 1960. Ela só cabe quando a Química, a Física aparecem e quando começa também a especialização das Ciências Sociais. Antes, ou você era historiador ou era folclorista”. É assim que Luiz Sávio de Almeida resume a intenção da reportagem de O Dia Mais, uma resposta em si mesma. Historiador por formação e professor de Sociologia pelos anos dedicados à academia, ele aponta o ranking entre especialidades como um reflexo das estruturas de poder e sua consequente organização social e econômica.

“Quando a dinâmica do processo de produção muda, vai mudando a dinâmica cultural e gerando toda essa nova pesquisa”, segue, apresentando o que chamou de “mudança do sagrado do poder”: Alagoas foi crescendo, a sociedade se urbanizando, novos processos industriais aparecendo e, aí, abriu-se espaço para uma mudança no padrão da intelectualidade, onde o saber era transmitido por pessoas realmente formadas na academia, e não “o padre que sabia cantar e era o professor de música”.

Como esses precursores acabaram se colocando em novos pedestais, separando “alto e baixo clero” na universidade, é outra volta no círculo do poder. “Para mim, o diabo é que todas essas ciências são línguas diferentes que falam sobre a mesma coisa”, se enraivece o professor.

Sávio Almeida defende que uma ciência não tem mais presença que a outra, mas que elas ocupam presenças diferentes pelo público que consegue entender do que se tratam tais estudos. Porém, a área de Exatas recebe um tratamento diferenciado pelo governo por ser uma pesquisa que não incomoda politicamente, por um lado, e por repercutir diretamente com as estruturas de produção, por outro.

E, tendo vivido a Universidade Federal de Alagoas durante o período de ditadura militar, querendo trabalhar as questões dos povos tradicionais (índio e negro) e, mais tarde, do Movimento Sem Terra (MST), o professor acostumou-se a correr por fora do circuito, arregimentando colegas e alunos para fazer as pesquisas, como fez com a área da Saúde e o trabalho com tribos indígenas. Seus objetivos eram simples, à época: fazer a universidade trabalhar para o povo que a mantém através de impostos e a formação dos futuros profissionais e pesquisadores de modo mais efetivo, envolvendo-os com os grupos que precisavam do conhecimento que eles produziam.

“Com essa brincadeira, conseguimos publicar só sobre índios 17 livros, umas três dissertações de mestrado e uns 30 a 40 TCCs [Trabalhos de Conclusão de Curso]. Criei a disciplina Índios de Alagoas na Ufal e conseguimos firmar parcerias com universidades da Holanda, Espanha, Austrália, Estados Unidos e, no Brasil, sempre publicávamos artigos com a USP [Universidade de São Paulo]. Tem hoje uns três a cinco doutores que começaram meninos comigo, gente que conviveu comigo 10, 15 e até 20 anos. Nosso trabalho não era a pesquisa, mas a formação desse pessoal”, defendeu professor Sávio.

E, para comprovar que a boa pesquisa científica não é apartada do convívio com objetos de estudo humanos, ele conta como trabalhou com o biólogo Gilberto Fontes. “Chamava ele de Mineirinho, era um ‘reaça’ danado. Aí o convidei para ir na tribo Kariri-Xocó, onde os índios estavam contraindo esquistossomose durante o trabalho fora da aldeia e contaminando quem ficava. Está vendo aí uma pesquisa de Biologia com um impacto social da bexiga?’.

Foto e Arte: Thalita Chargel

Uneal e o conhecimento no interior

É inevitável pensar na Universidade Federal de Alagoas quando se pensa em ensino superior e produção científica no estado. Uma mudança começa a surgir irradiando de Arapiraca, polo sede da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), que desfrutou nos últimos anos de um crescimento considerável em sua estrutura de ensino, pesquisa e extensão.

Fundada em 1970, como Fundação Educacional do Agreste Alagoano, foi elevada à categoria de universidade em 2006. Saiu de Arapiraca para criar campi em outras cinco cidades – Santana do Ipanema, Palmeira dos Índios, São Miguel dos Campos, União dos Palmares e Maceió – com 33 cursos, quase todos voltados para a licenciatura, mas também uma disputada faculdade de Direito e outra de Zootecnia, no sertão, para “diversificar” das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

No Censo 2016 do Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (DGPN), um inventário dos grupos de pesquisa científica e tecnológica em atividade no país, a Uneal foi responsável por 56 dos 517 grupos de pesquisa em ação no estado de Alagoas aquele ano. Parece pouco, porém dois anos atrás, esse número era de 29 grupos e, em 2010, 22.

É maior ainda quando a outra universidade do estado, a Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal), vem em 4º lugar, com 20 grupos de pesquisa, atrás do Instituto Federal de Alagoas (Ifal) e sua grande tradição científica, com 44 equipes de pesquisadores.

Uma evolução que reflete o aproveitamento de um panorama nacional favorável (governos Lula e Dilma e seu estímulo ao ensino superior e produção científica no país) e um grupo político engajado com uma universidade pública acessível no interior do estado, explica Jairo Campos, reitor da Uneal há 6 anos e meio.

“Como nos orgulhamos de termos sido criados no interior e estar a serviço do interior de Alagoas, que precisa muito de nossa existência, terminamos nos motivando a construir esse espaço, criar núcleos de pesquisa. É um desafio para todos nós pensar o interior do país, sobretudo o interior de Alagoas, que é onde se concentram as maiores mazelas de discrepância, de acesso a bens materiais, culturais e educação. Fomentar o espírito universitário no interior, para que as pessoas tenham acesso a essa vivência acadêmica não só nos grandes centros, é uma das dimensões que tenho encarado como desafio imenso”, ponderou.

Aqui, temos um exemplo do pesquisador ligado a uma causa que não perdeu sua objetividade, como apontou anteriormente a professora Belmira Magalhães. Na gestão de Jairo Campos e seu grupo de pró-reitores, a Uneal fomentou núcleos de pesquisa, abriu linhas de financiamento com recursos próprios e externos, política de auxílio ao pesquisador (montagem de salas, biblioteca e equipamentos) e mobilidade acadêmica, facilitando a publicação de trabalhos na comunidade acadêmica alagoana e nacional, tanto de professores como de estudantes. Passagens e auxílios para participação em eventos científicos também entraram nessa conta.

Em 2016, a Uneal finalmente criou seu primeiro curso de Mestrado com o Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Cultura da Universidade Estadual de Alagoas (ProDiC/Uneal). O primeiro de muito, segundo Jairo.

“Nesses anos, liberamos todos os professores que queriam buscar essa formação e capacitação no mestrado e doutorado por conta própria, e aprovamos dois doutorados interinstitucionais (DINTER), em Educação e Letras. Estamos formando 12 doutores em Letras em parceira com a Universidade Estadual de Maringá (UEM) e 18 em Educação com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A volta desses professores vai permitir estruturar novos programas de pós-graduação strictu sensu na Uneal”, já planeja o reitor.

No campo das ideologias, a universidade estadual deu vez e voz a grupos que estavam fora do circuito do poder e aderiu às pautas dos povos tradicionais e de segmentos da população alagoana que historicamente foram vítimas de exclusão, ficando de fora das políticas públicas. Ou seja, pautas do negro, do índio, dos professores do campo, do movimento LGBT e dos movimentos sociais.

“Temos uma compreensão muito clara de que com as nossas ações e nossos projetos, com os recursos captados para a formação de professores indígenas e de professores do campo, o Xangô Rezado Alto, as ações de pesquisa e extensão ligadas ao movimento LGBT, tudo isso é uma dimensão importante de reconhecimento da influência que esses cidadãos alagoanos tiveram para a construção da historiografia alagoana”, diz Jairo.

Outra linha que tem sido fomentada é o campo da cultura popular. No próximo dia 15 de junho, a Uneal inaugura o Museu de Arte Popular na Ilha do Ferro, município de Pão de Açúcar, às margens do Rio São Francisco. Outro espaço está sendo construído junto ao campus de União dos Palmares, para valorizar a tradição do barro da comunidade quilombola Muquém, diante de um investimento de R$ 15 milhões do Governo do Estado.

“Tudo isso termina se transformando em potenciais de pesquisa para a comunidade acadêmica. É uma singularidade que o povo permite que isso sobreviva, que seja passado de geração em geração. A cultura alagoana, em todas as suas manifestações, que é algo estudado pelas Ciências Humanas, tem sido o carro-chefe, o ponto de partida e de chegada que atravessa transversalmente todas as ciências, todos os cursos, todas as áreas da Universidade Estadual de Alagoas”, finalizou Jairo Campos.

Foto: Agência Alagoas / Arte: Thalita Chargel

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