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09/11/2020

Ao Valor, Viana fala sobre mercado para matemáticos

Ela é quase invisível, mas cada vez mais onipresente. “No tempo da televisão analógica, a matemática era relativamente pequena, mas, hoje, se você está assistindo futebol, a qualidade da imagem é resultado de uma modelagem super sofisticada que ajusta a resolução das partes mais importantes da transmissão em tempo real”, apontou Marcelo Viana em entrevista ao Jornal Valor Econômico veiculada nesta segunda-feira (9). Na reportagem de Gabriel Vasconcelos, o diretor-geral do IMPA falou sobre a importância da aproximação entre o setor acadêmico e a indústria, com base nas necessidades que o mercado de trabalho vem desenvolvendo. 

De indústrias aeroespacial e automobilística aos modelos capazes de mensurar a eficácia de medicamentos na indústria farmacêutica, a matemática sempre teve papel fundamental para as novas tecnologias, o que vem se intensificando nos últimos anos. A matéria chama atenção para o baixo número de matemáticos que o Brasil forma a cada ano, no momento em que a demanda por esses profissionais cresce mundialmente. 

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Dados do Ministério da Educação (MEC) mostram que nos últimos oito anos, a cada 10 mil brasileiros, dois ingressam em cursos superiores de ciências naturais, matemáticas e estatísticas, e a média de concluintes foi de 0,7.  Enquanto nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a quantidade de matriculados é o dobro da média brasileira e o número de formados é mais do que quatro vezes maior. “Hoje o Brasil forma, em média, 200 doutores por ano nas áreas de matemática e estatística, dos quais algo em torno de 16 saem do IMPA”, destacou Viana. 

Realidade que o diretor de pesquisa do Centro de Estudos de Matemática YouCubed, da Universidade de Stanford, Jack Dieckmann, vem tentando mudar já nos primeiros anos do ensino fundamental. Dieckmann lembrou na reportagem que a estrutura de ensino da matemática na maior parte do mundo não mudou nos últimos 50 anos. “O professor explica e os alunos imitam. O que faz com que poucos tenham sucesso em matemática e as economias acabam perdendo muitos talentos em potencial”, destacou ao Valor. 

Este ano, a abordagem do Curso de Férias Mentalidades Matemáticas Brasil, que vem sendo trabalhada pelo pesquisador, foi adaptada a um curso de férias de 10 dias, no Brasil. Os resultados iniciais mostraram que a imersão levou ao avanço de 1,3 ano de escolaridade em conceitos matemáticos. 

Confira a reportagem do Jornal Valor Econômico, na íntegra:

Há poucos matemáticos para um novo mercado

O Brasil segue formando poucos matemáticos no momento em que a necessidade por esses profissionais cresce em todo o mundo. A demanda vem na esteira de tecnologias cada vez mais dependentes de modelos complexos ou de tratamento massivo de dados. Entre as causas do déficit de profissionais, matemáticos de renome citam a falta de políticas públicas aderentes às necessidade econômicas, o subfinancimento da pesquisa científica e equívocos no ensino básico a crianças e adolescentes. 

O Censo da Educação Superior, divulgado este ano pelo Ministério da Educação (MEC), apontou que nos últimos oito anos o Brasil manteve média próxima a 2 ingressantes e apenas 0,7 concluintes a cada 10 mil habitantes nos cursos superiores de ciências naturais, matemática e estatística. Os números marcam essas carreiras como as menos procuradas entre as 10 áreas consideradas pelo MEC. Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a quantidade de matriculados nessas carreiras a cada ano é o dobro da média brasileira e o número de formados é mais do que quatro vezes maior, 2,7 a cada 10 mil pessoas. 

Professor dos cursos de Matemática Aplicada e Engenharia Matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Flávio Dickstein afirma que as novas aplicações da matemática vieram para ficar. “É muito mais abrangente do que se pode pensar num primeiro momento. Eventos como a pandemia mostram isso. Matemáticos e engenheiros de computação foram tão requisitados quanto epidemiologistas para tratar dados e modelar o fenômeno”, afirma. 

Dickstein cita a estimativa do governo dos Estados Unidos, em seu Guia de Perspectivas Ocupacionais, na tradução para o português, de crescimento de 33% na demanda por matemáticos e estatísticos até 2026. No Brasil, pela dinâmica da economia, a demanda pode ser menor, mas ainda assim será relevante, diz ele. Um estudo da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) aponta que, até 2024, a demanda por profissionais de tecnologia no país será de 70 mil ao ano, enquanto o número de formados na área até lá deve girar em torno de 46 mil. 

Segundo o diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), Marcelo Viana, a matemática sempre teve papel decisivo na criação de novas tecnologias, mas isso tem se intensificado “de forma exponencial” nos últimos anos. “Governos e empresas em todo o mundo têm demonstrado atenção a este fenômeno, mas, no Brasil, isso está passando um pouco despercebido”, diz. 

Na falta de estudos sobre a realidade brasileira, Viana cita levantamento da consultoria Deloitte, apontando que, ainda no início dessa década, em países desenvolvidos como o Reino Unido, 10% a 11% dos empregos já se concentravam em profissões com forte teor matemático e que essas atividades contribuíam com até 16% do Produto Interno Bruto desses países. Aplicadas estas conclusões à realidade brasileira, as chamadas atividades matemáticas movimentariam perto de R$ 1 trilhão todos os anos. “Não tenha dúvida de que esses números cresceram desde então”, afirma Viana.

A tragédia é que a matemática é quase invisível ao passo que está cada vez mais onipresente”, afirma o estudioso. Como exemplos, cita a migração contínua da atividade econômica para o mundo digital, apoiada em matemática, ou o desenvolvimento das diferentes gerações de aparelhos celulares cada vez mais modernos. “No tempo da televisão analógica, a matemática envolvida era relativamente pequena, mas, hoje, se você está assistindo futebol, a qualidade da imagem é resultado de uma modelagem super sofisticada que ajusta a resolução das partes mais importantes da transmissão em tempo real”, exemplifica o diretor-geral do Impa. A longa lista de exemplos abarca aplicações tradicionais, como as das indústrias aeroespacial e automobilística, até casos mais recentes, como os modelos capazes de predizer a eficácia de medicamentos na indústria farmacêutica. 

Todos os matemáticos ouvidos pelo Valor afirmam que o desenvolvimento e gestão dos modelos por trás de tecnologias de ponta exigem a formação de mestres e, principalmente, doutores em matemática aplicada. Mas o número de pesquisadores desse nível no Brasil ainda é pequeno na comparação com outros países. “Hoje o Brasil forma, em média, 200 doutores por ano na áreas de matemática e estatística, dos quais algo em torno de 16 saem do Impa. Esse número é oito vezes inferior ao dos Estados Unidos e de duas a três vezes menor que a capacidade de formação na França. É um calcanhar de aquiles com sérias repercussões econômicas”, diz Viana. 

Dickstein, da UFRJ, afirma que o problema se torna mais grave pelo fato de mais da metade desses doutores desenvolverem pesquisas de matemática pura, com pouco contato imediato com o mercado. “Isso é fundamental, mas ambas [pesquisa matemática pura e aplicada] ainda precisam se multiplicar e muito”. Dickstein lembra que, em 2018, o desempenho dos pesquisadores brasileiros na matemática levou a União Matemática Internacional (IMU, na sigla em inglês) a incluir o Brasil no restrito Grupo 5, o conjunto dos 11 países mais desenvolvidos na pesquisa científica da área. Esse reconhecimento, porém, diz mais sobre a qualidade da pesquisa do que a quantidade e aplicabilidade. 

Sobre uma solução para o déficit de pesquisadores e profissionais de mercado ligados à matemática, Dickstein é direto: “antes de pensar em formar mais, é preciso parar de cortar, preservar o que já existe”. O professor lembra que a dotação orçamentária da UFRJ vem caindo continuamente há nove anos, desde 2012, quando atingiu o pico de R$ 735,4 milhões. Para 2021, estariam previstos menos da metade desse valor, R$ 310,5 milhões, sendo que a comunidade acadêmica ainda teme um corte linear superior a 15% no orçamento da pesquisa de todo o país. “Isso compromete muito a formação de novos pesquisadores. As bolsas são reduzidas e os laboratórios vazios. O resultado é uma fuga de cérebros contínua e sem precedentes, que já vem há alguns anos”, reclama. 

Viana concorda e aponta a má formação de base dos alunos, o que limita a qualidade e a oferta de graduandos para os programas de pesquisa. “A procura pela área já é baixa e todos sabemos que há um vilão da evasão dos cursos de graduação chamado cálculo”, diz. De fato, resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), mostra que 70% dos jovens brasileiros na faixa dos 15 anos não dominam a matemática básica, o que, além de ser um problema em si, é encarado como grave desestímulo à carreira. Quando conseguem acessar a universidade, muitos estudantes não acompanham as disciplinas engrossando as taxas de evasão.

Stanford quer mudar relação com a disciplina

O diretor de pesquisa do Centro de Estudos de Matemática YouCubed, da Universidade de Stanford, Jack Dieckmann, tem convivido de perto com as limitações do ensino da matemática no Brasil. Embora tenham dinâmicas pedagógicas bem diferentes, ele afirma que Brasil e Estados Unidos sofrem dos mesmos problemas no ensino básico da matemática para crianças. A raiz do problema estaria nas premissas básicas que caracterizam o ensino em sala de aula: fórmulas decoradas, fetiche da velocidade e aversão ao erro. As três características criariam gatilhos de ansiedade nas crianças que bloqueiam o interesse pela área.

“Temos ideias e tecnologias novas, mas a estrutura de ensino da matemática na maior parte do mundo praticamente não mudou nos últimos 50 anos. O professor explica e os alunos imitam. Essa abordagem faz com que poucos tenham sucesso em matemática e as economias acabam perdendo muitos talentos em potencial”, diz Dieckmann.

A partir desse diagnóstico, os pesquisadores de Stanford desenvolveram um método de ensino que vem sendo aplicado desde 2015 nos Estados Unidos, junto a 3 mil professores e com acompanhamento regular em 16 escolas americanas. Em 2019, o modelo foi adaptado a um curso de férias de 10 dias e trazido para o Brasil pelo Instituto Sidarta, para aplicação em escolas particulares da rede, e duas escolas municipais de Cotia, em São Paulo.

Na prática, os alunos são submetidos a espécies de jogos matemáticos em grupo e com mais de uma resposta correta, em um processo filmado para análise posterior. Os primeiros resultados indicaram que uma imersão de poucos dias levou a uma evolução média de 1,3 ano de escolaridade em conceitos matemáticos. Dieckmann, que veio ao Brasil pela primeira vez por intermédio de Marcelo Viana, do Impa, diz que não há um interesse em influenciar as bases curriculares brasileiras de forma institucional, mas apenas difundir o método junto a professores. “É preciso que eles [professores] se convençam da necessidade de mudar a relação dos alunos com a matemática”, afirma.

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