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17/11/2020

2ª colocada no Prêmio IMPA-SBM fala sobre raios no Brasil

Imagem: Design: Carlos Eduardo Hara/ Reprodução Revista Superinteressante

Reprodução da matéria “Brasil, o país dos raios”, de Guilherme Eler, na Revista Superinteressante 

Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, diz o ditado. Mentira. Eles não só repetem lugares (o Cristo Redentor é atingido em média seis vezes por ano) como repetem pessoas. Neide Maria Cardoso, 58, que o diga. A empresária, que vive em Piraquara, nos arredores de Curitiba (PR), foi atingida duas vezes. E sobreviveu a ambas.

Na primeira, em 1967, tinha 7 anos de idade. “Era uma quarta depois do almoço, minha mãe tirava a mesa, minhas irmãs lavavam a louça e eu lia um livro no sofá. Estava muito calor e começou a chover. De repente, um clarão atravessou a casa. Depois, ouvi um estrondo ensurdecedor.” Neide estava próxima à parede, com a cabeça na altura de uma tomada. A descarga elétrica do raio entrou por ali e derreteu o plugue, atingindo seu ouvido direito. Ela tem problemas de audição permanentes por causa do episódio.

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O segundo raio caiu na véspera do Carnaval de 2009. Neide organizava uma festa para um grupo de amigos em um galpão. “Fazia muito calor e o tempo escureceu. Eram 3 da tarde e parecia noite. Mas nada de chuva.” O plano era terminar os preparativos e voltar para casa, que fica a 700 metros do galpão, antes da água começar a cair. Não deu tempo.

“Senti um soco nas costas e caí no chão. Vi minhas mãos tremendo e senti meu corpo preso ao piso. Dentro da boca, senti meus dentes quebrarem. Ouvi o trovão e pensei: é um raio, e estou morrendo.”

O raio deixou queimaduras que se estendiam das costas aos calcanhares. Seus chinelos derreteram, e suas obturações de fato se soltaram dos dentes. Ela também teve uma perda de memória parcial, que durou ao menos três meses. E o trauma ficou. “Tive que fazer terapia por anos.”

77,8 milhões de descargas elétricas despencam todos os anos no Brasil. Somos campeões mundiais no quesito. Uma consequência da localização e do tamanho de nosso território. O Brasil é o maior país tropical do planeta, e os trópicos têm o clima mais suscetível a tempestades. No mínimo 300 brasileiros são atingidos todos os anos. Um em cada três acidentes é fatal: entre 2000 e 2019, raios foram responsáveis por 110 mortes por ano, em média. Foram 2.194 óbitos em duas décadas.

Os números são parte de um relatório feito pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cedido com exclusividade à SUPER. Trata-se de uma das pesquisas mais extensas já feitas sobre mortes por raios no mundo. “A gente chegou a um nível de detalhamento que só existe nos Estados Unidos. Além de nós, eles são o único país que conta com um levantamento tão completo”, diz Osmar Pinto Jr., coordenador do Elat. O levantamento reúne informações coletadas pela Defesa Civil e pelo Ministério da Saúde, além de casos divulgados na imprensa ou obtidos pelo próprio Elat nos últimos 20 anos.

O estudo revelou que a maior parte das vítimas de raios são homens (82% dos casos) entre 20 e 29 anos. Essa é a faixa etária de 26% dos óbitos. Um em cada quatro acidentes com raios envolve pessoas na zona rural trabalhando a céu aberto em alguma atividade ligada ao agronegócio – como a maior parte dessa força de trabalho é formada por homens jovens, eles são o grande “grupo de risco”.

O segundo local mais propício para morrer atingido por um raio é dentro de casa: as vítimas estavam em seus lares em 21% das vezes (no Norte e no Nordeste, diga-se, as vítimas em casa são mais numerosas que os mortos durante o trabalho na lavoura). Nesses casos, os raios caem próximos às residências e chegam ao interior dos cômodos através da rede elétrica ou telefônica, como aconteceu com Neide em 1967.

Toda vez que um raio cai próximo à rede elétrica, ele dá uma reforçada brutal na corrente que já passa pelo fio. Como corrente, você pode entender uma grande quantidade de elétrons fluindo em fila indiana pelo fio. A corrente extra causada por um raio percorre a fiação até atingir um para-raios, onde é redirecionada ao solo sem causar estragos à fiação da casa. Tal artifício impede que a dose de eletricidade exagerada chegue às tomadas – e, por tabela, ao corpo dos moradores. É como desviar a água de um rio para ele não transbordar.

O problema é que para-raios e outras estruturas de proteção nem sempre estão disponíveis, principalmente em regiões mais pobres ou afastadas dos centros urbanos – onde as redes elétricas e telefônicas costumam ser menos seguras.

Letícia Moreira, 37, que vive na zona rural de Santa Rita do Sapucaí (MG), não precisou sair de casa para ser atingida duas vezes. O primeiro acidente, ainda em 1998, aconteceu enquanto estava usando o telefone fixo – mesmo vivendo em uma residência equipada com para-raios. “Fui arremessada pelo impacto e só acordei segundos depois, com o ouvido queimado e o coração disparado.” Onze anos depois, um novo acidente. Dessa vez, ela observava a chuva forte que caía da janela da cozinha, descalça e encostada no fogão. Uma descarga elétrica invadiu a fiação da casa e desceu pelo objeto, que estava ligado à tomada, causando queimaduras graves.

Lugar errado na hora errada
Descubra onde estavam e o que faziam as vítimas de raios no Brasil.

Em área rural ou descampada
Destes, 52% trabalhando com agropecuária a céu aberto; 18% jogando futebol; 30% outros (terreno baldio, aterro sanitário, cemitério, etc.).

Em casa
Destes, 12% próximos de (ou encostados em) janelas e portas; 10% ao telefone; 5% próximos de (ou encostados em) aparelhos conectados à energia; 73% realizando atividade não identificada.

Embaixo de árvores
Destes, 55% se escondendo da chuva; 9% colhendo frutas; 36% caminhando em área a céu aberto com árvores (praça, jardim, etc.).

Próximo a corpos d’água
Destes, 37% na areia da praia, em um calçadão ou na margem de um rio; 27% pescando; 16% navegando; 10% dentro do mar; 9% dentro de rio, represa, cachoeira, piscina, etc.

Do céu ao chão

Uma nuvem é feita basicamente de água. Vista de perto, aquela massa branca e felpuda é um enorme conjunto de gotas de H2O e cristais de gelo suspensos na atmosfera. Uma nuvem do tipo cumulonimbus – essas enormes e escuras, que causam temporais de verão – tem mais de 10 km de altura da base até o topo. Ou seja: é muita água.

Na base da nuvem, mais quente e próxima ao chão, essa água fica em estado líquido. No topo, onde é mais frio, a água congela. Eis o toque final: o ar quente quer subir porque é menos denso. E o ar frio lá no alto tende a descer. Assim, o interior da cumulonimbus vira uma lava lamp gigante. A água que está embaixo sobe e congela constantemente. Ao congelar, volta a cair.

Os cristais de gelo bem pequenos, que se formam por congelamento conforme a água sobe, colidem com o granizo gordinho que já está descendo. Esse atrito faz com que o gelo fique carregado eletricamente. Os físicos ainda não sabem exatamente por quê, mas, após as colisões, as partículas que descem costumam levar consigo cargas elétricas negativas.

Por causa disso, a base da nuvem, mais próxima do solo, fica carregada negativamente, isto é: fica cheia de elétrons para dar (elétrons, no átomo, são as partículas de carga negativa). Os opostos se atraem, e os iguais se afastam: as partículas negativas que estão no chão se sentem repelidas por suas iguais lá na nuvem. Elas vão embora, e o chão fica todinho positivo.

Isso é um problema. Afinal, todo elétron que está na nuvem é um solteiro negativo em busca de uma cara-metade positiva para equilibrá-lo. “+” e “-” são como yin e yang. A nuvem quer liberar uma caravana de elétrons rumo ao chão para extravasar a tensão, porque lá embaixo há um monte de positivos. E isso é uma corrente elétrica. Igual à que circula no fio da sua casa. Só que essa não tem fio para guiar seu caminho. Passa pelo céu, mesmo.

O ar não é um meio condutor tão bom quanto um fio e, em geral, isola essa vontade toda de soltar uma faísca. Mas se a tensão for muito forte, ela vence o isolamento. Quando finalmente se liberta, o fluxo de elétrons despenca de até 20 km de altura em um centésimo de segundo. Mas permanece invisível a uma distância de até 100 m do solo.

Isso é porque, para que o raio de fato se forme, ainda é necessário que um objeto na superfície – como uma árvore – colabore e feche o circuito. Com o trajeto nuvem-árvore conectado, os elétrons passam a fluir da nuvem para a árvore. Eis o raio. Essa corrente elétrica aquece o ar a temperaturas da escala dos 30 mil °C. É só nesse momento que você vê o clarão.

E não só um clarão: como resultado do calor intenso, o ar ao redor do raio se expande rapidamente. Isso causa um barulho altíssimo (pelo mesmo motivo que um fogão estala quando esquenta, mas com uma intensidade bem mais estrondosa). Ao barulho do ar, damos o nome de trovão. Como a luz é mais rápida que o som, vemos primeiro o clarão, e só depois vem o ruído.

9% das mortes por raio no Brasil, aliás, acontecem embaixo de árvores. O raio cai nela inicialmente porque vê ali um caminho mais curto até o chão (quanto mais alto o objeto, maior o perigo de ele ser atingido). Mas se, após penetrar na árvore, a corrente elétrica encontrar um outro caminho até o chão – digamos, você, que está lá embaixo para se proteger – ela vai percorrer seu corpo também. Mesmo uma enxada ou facão, objetos comuns nas mãos de agricultores, atraem elétrons – bem como uma cerca de arame –, pois são feitos de metal, que facilita a passagem da corrente.

Uma em um milhão

A chance de sobreviver após ser atingido diretamente por um raio é praticamente nula (todos os casos narrados na matéria foram indiretos, ou seja, ou o raio chegou via tomada ou caiu próximo à pessoa). Além de provocar uma parada cardiorrespiratória, a corrente que cai do céu causa queimaduras que não se limitam à pele e atingem também os órgãos internos. Sabe-se que os raios mais fracos têm corrente elétrica que atinge 2 mil ampéres – pelo menos 80 vezes a de um chuveiro elétrico. Mas há raios cuja corrente é até 8 mil vezes a de um chuveiro, chegando à casa dos 200 mil ampéres.

De acordo com o Elat, a chance de alguém ser atingido diretamente por um raio é de uma em 1 milhão. Mas se você ficar numa área descampada durante meia hora sob um temporal comum, o número sobe para 1 em 10 mil. Em tempestades mais intensas, a relação pode ser de até 1 para mil.

Muitas vítimas estavam em campos de futebol. É o caso de Alexandre Hammerschlag, 27, treinador de goleiros em Londrina (PR). Atingido por um raio em novembro de 2017, Alexandre sofreu duas paradas cardíacas consecutivas. Seu tímpano foi perfurado pelo barulho do trovão e ele sofreu queimaduras pelo corpo. Felizmente, o raio caiu a alguns metros do local em que ele estava, e não diretamente na sua cabeça. A corrente percorreu o chão encharcado e entrou pelos seus pés. “Dependendo da intensidade do raio, ficar a até 50 metros poderia ser fatal. Na água do mar [que conduz muito mais eletricidade] essa distância pode ser de até 1 quilômetro”, diz Osmar Pinto, do Elat.

Praias do Sudeste têm o maior percentual de mortes na água do mar (60%) ou na areia (51%), já que recebem mais banhistas. Em dezembro de 2014, na Praia Grande, litoral de São Paulo, oito pessoas foram atingidas de uma vez. Quatro morreram.

Abrigar-se em locais que protegem da chuva, mas não dos raios, como guarda-sóis, não é recomendado. Nesses casos, o melhor a fazer é sair o mais rápido possível, buscando abrigo em um carro fechado ou no interior de uma residência. Caso não haja para onde correr, a melhor forma de se proteger é ficar agachado em um trecho de chão seco. Isso diminui sua altura – o que te torna menos apetitoso para o raio –, e o chão seco evita que a eletricidade te alcance por baixo, pela água.

Contando raios

O Elat opera uma rede de 110 sensores espalhados pelo País, capazes de mapear a incidência de descargas elétricas com margem de erro de 1 km. Dá para saber em que parte de uma cidade ocorrem mais raios – e a intensidade das descargas. A partir deste ano, esses dados se tornarão mais precisos graças a sensores a bordo de dois satélites. Com esses colaboradores em órbita, Osmar Pinto Jr. e sua equipe poderão mapear mais de 90% dos raios que caem no Brasil.

Desde 2015, o Elat passou a monitorar também as descargas elétricas no interior das nuvens (afinal, a nuvem também tem um polo positivo e um negativo, e pode liberar a própria tensão com uma faísca dentro de si mesma, sem apelar para o chão). Isso permite saber com até 15 minutos de antecedência se um raio vai cair – ou, pelo menos, se há uma grande chance de que isso aconteça. No futuro, talvez seja possível enviar um alerta para quem está em áreas de risco alto. Isso evitaria não só mortes como muitos equipamentos eletrônicos torrados.

Com a ajuda de modelos matemáticos, é possível fazer também previsões a longo prazo, na escala de décadas. Essas deverão ser importantes com o avanço das mudanças climáticas. Com o aumento nas temperaturas médias e a intensificação da urbanização – que forma ilhas de calor nas cidades –, a tendência é de um aumento no número de tempestades (e, por consequência, de raios). Afinal, se o tempo está mais quente, mais água evapora e mais nuvens se formam.

Dados do Inpe de 2002 davam conta de que 55 milhões de raios caíam no Brasil por ano – 30% menos do que os 77,8 milhões atuais. Estima-se que haverá 10% mais raios cada vez que a temperatura global do planeta aumentar 1 °C. E isso, para a humanidade, significa mais danos a estruturas e redes elétricas, mais incêndios naturais em florestas, e uma chance maior de ser atingido por raio – talvez mais de uma vez.

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