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09/08/2021

No blog Ciência & Matemática: António Aniceto Monteiro

Reprodução do blog do IMPA Ciência & Matemática, de O Globo, coordenado por Claudio Landim

Luis Saraiva – Professor do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e do Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia.

Uma perspectiva mais completa da ação de qualquer pessoa implica ter-se em conta o contexto em que viveu, as restrições que teve de enfrentar ou, pelo contrário, o ambiente favorável que encontrou. Neste sentido podemos dizer que o matemático António Aniceto Monteiro foi um verdadeiro gigante na ciência do século XX, e mais especificamente na matemática. Viveu a época conturbada do pós Primeira Guerra Mundial, com a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa, que culminaram na Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e na 2ª Guerra Mundial (1939-1945). No seu país suportou a época inicial de uma ditadura que se estendeu de 1926 até 1974, um regime retrógrado que colocava o povo sob intensa vigilância e repressão. Mesmo quando partiu para o Brasil para aí viver, Monteiro continuou a ser vigiado pela polícia política portuguesa.

Foi educado num sistema universitário que tinha como única finalidade a transmissão de conhecimento aos futuros quadros da administração pública e aos futuros professores. O currículo universitário no que diz respeito à matemática era antiquado, tinha imensas falhas, e a investigação matemática praticamente não existia enquanto atividade organizada.

No primeiro relatório trimestral que enviou de Paris, onde estava a fazer um estágio que o havia de conduzir ao doutorado, dirigido à Junta de Educação Nacional, a entidade que subsidiava a sua estada e a quem tinha de prestar contas periodicamente, caracterizou de forma preocupante o conhecimento recebido por um licenciado em Ciências Matemáticas no Ensino Superior em Portugal:

“ignorância de uma enormidade de conhecimentos basilares; educação enciclopédica, de que resulta o conhecimento superficial de todas as matérias estudadas; ausência quase completa de espírito crítico; ausência de iniciação aos métodos de investigação, de que resulta um interesse nulo pela investigação científica.”

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É este grave estado de coisas que Monteiro queria mudar quando completasse a sua formação em Paris (1931-1936) e regressasse a Portugal, o que aconteceu após concluir o seu doutorado sob a orientação do matemático francês Maurice Fréchet.

No regresso a Portugal Monteiro foi o dinamizador principal daquela que ficou conhecida por “Geração de 40”, que em dez anos (1936-1945) mudou o panorama matemático português, criando em 1937 um jornal de investigação matemática internacional, a Portugaliae Mathematica, que ainda hoje existe, iniciando um jornal de divulgação matemática em 1940, a Gazeta de Matemática, que igualmente continua a ser publicada [3], e fundando a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) em 1940. Esse grupo de matemáticos teve uma atividade constante na organização de diversos Seminários sobre temas da atualidade matemática e fundaram diversos centros de pesquisa, criando condições para, de um modo continuado, se poder desenvolver investigação matemática em Portugal sobre temas então atuais.

Monteiro considerava que o renascimento da matemática no seu país só seria possível se se criasse uma corrente de fundo entre os estudantes do Ensino Secundário e da Universidade de interesse pela Matemática. Nesse sentido, e igualmente como tentativa de ultrapassar o bloqueamento que era feito na Universidade às propostas de renovação curricular dos matemáticos da nova geração, e seguindo o exemplo dos Estados Unidos para mobilizar a juventude e levá-la a uma prática em que desenvolvesse um espírito crítico virado para a pesquisa, foram criados os Clubes de Matemática em 1942. De começo a iniciativa teve muito sucesso, foram fundados clubes em várias universidades e faculdades, mas pouca duração tiveram, pois o Governo, receoso de tudo o que fosse adquirir espírito crítico, fez espalhar o boato que neles só participavam comunistas, o que bastou para em poucos anos fazê-los desaparecer.

A Ditadura queria manter um controle estrito sobre a população, e com a vitória da Frente Popular nas eleições espanholas de Fevereiro de 1936 o regime entrou em pânico, sentindo-se ameaçado por haver em Espanha uma aliança progressista no poder, que incluía os socialistas. Apertou então o seu controle, e fez entrar em vigor um decreto que obrigava todos os que queriam ter emprego no Estado a assinar uma declaração que essencialmente exprimia o apoio ao regime. Monteiro recusou assinar essa declaração, e em consequência ficou impossibilitado de trabalhar para o Estado, nomeadamente não podia ser docente universitário. Deste modo, para ganhar a vida, Monteiro deu explicações particulares. Mas a situação estava muito longe de ser ideal, e Monteiro a partir de certa altura começou a procurar hipóteses de trabalho fora de Portugal, no que foi ajudado por matemáticos estrangeiros.

Acabou por aparecer um convite do Brasil em Setembro de 1943 que ele aceitou, mas as burocracias da ditadura atrasaram cerca de ano e meio a sua partida. Deixou então Portugal, na companhia de sua esposa Lídia, e dos dois filhos, António e Luiz. Teve a cátedra de Análise Superior na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi), no Rio de Janeiro, futura UFRJ. Nessa altura o seu Departamento de Matemática era o segundo melhor centro de matemática do Brasil, estando o primeiro na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de S. Paulo (FFCL). Assinou um contrato de quatro anos, renovável. O Departamento de Matemática da FNFi teve visitantes estrangeiros importantes, como Abraham Adrien Albert (1905-1972), Professor Catedrático em Chicago e futuro Presidente da American Mathematical Society no biénio 1965/66, e Marshall Harvey Stone (1903-1989), Professor Catedrático em Harvard, Presidente da American Mathematical Society em 1943/44, e futuro Presidente da International Mathematical Union no período 1952-54. Monteiro deu vários cursos e seminários sobre temas como Topologia Geral, Espaços de Hilbert, Análise Funcional, Álgebras de Boole e Reticulados. Contactou importantes matemáticos, entretanto chegados à FFCL, alguns já conhecidos de Paris, como André Weil (1906-1998) e Jean Dieudonné, (1906-1992) dois elementos fundamentais do grupo Bourbaki.

Monteiro orientou alguns alunos nos anos que esteve no Rio de Janeiro: Maria Laura Mouzinho (mais tarde Maria Laura Leite Lopes) (1917-2013) teve Monteiro por supervisor do seu doutorado, sendo a segunda mulher a obter o doutorado em matemática no Brasil (1949). A primeira tinha sido Marília Peixoto (1921-1961), ao ser aprovada em concurso para livre docente na Escola Nacional de Engenharia [5] em 1948. Além disso teve influência decisiva em Leopoldo Nachbin (1922-1993), contratado em 1947 para docente da FNFi, Maurício Peixoto (1921-2019), da Escola Nacional de Engenharia, o único matemático brasileiro com o qual Monteiro tem um artigo em comum publicado na Portugaliae Mathematica, e Paulo Ribenboim (1928-), também contratado para a FNFi em 1948. Nachbin foi um dos maiores matemáticos brasileiros do século XX, estando na fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas em 1949, na do CNPq e da CAPES em 1951. Foram alunos de Monteiro os dois primeiros matemáticos brasileiros a darem conferências plenárias nos Congressos Internacional de Matemáticos: Leopoldo Nachbin em Estocolmo, 1962, e Maurício Peixoto em Vancouver, em 1974. Os dois, conjuntamente com Lélio Gama, foram co-fundadores do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) em 1952. Peixoto foi presidente do CNPq, da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira de Matemática. Já na Argentina, Monteiro orientou o doutorado de Mário Tourasse Teixeira (1925-1993) que defendeu a sua tese na FFCL da Universidade de S. Paulo em 1965.

Em 1945 e 46 Monteiro foi igualmente investigador no Núcleo Técnico Científico da Fundação Getúlio Vargas, e com Lélio Gama (1892-1981) coordenou o seu Núcleo de Matemática. Participou da fundação da revista de pesquisa matemática Summa Brasiliensis Mathematicae, da qual sairam 2 volumes entre 1946 e 1951: o primeiro diz respeito ao período 1945/46, o segundo é relativo aos anos 1947/51. Estes dois primeiros números têm artigos de Monteiro (com Hugo Ribeiro), Nachbin, Maria Laura, Paulo Ribenboim, Maurício Peixoto e Lélio Gama, mas igualmente de Paul Halmos (1916-2006), Jean Dieudonné (2), Abraham Albert (2), André Weil, Paul Erdös (1913-1996), Jacques Dixmier (1924-) e Oscar Zariski (1899-1986). Depois da partida de Monteiro para a Argentina ainda foram publicados mais dois números, o nº 3, com artigos de 1952 a 1956, e o nº4, relativo ao período de 1957 a 1960.

Em 1948 iniciou a publicação das Notas de Matemática, sendo o editor dos seis primeiros volumes (1948/49), que incluem dois trabalhos seus, dois de Nachbin, um de Maurício Peixoto e um de José Abdelhay (1917-1996), colega de Monteiro no Departamento de Matemática da FNFi. Do nº7, já com Monteiro na Argentina, até ao nº 47, em 1972, foi Nachbin o editor. A partir daí a North Holland Publishing Company tomou conta das Notas, se bem que Nachbin ainda tenha sido o editor dos primeiros números.

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