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09/03/2018

Matemática traz perspectivas no Vale do Jequitinhonha

Gilza (no centro) e o professor Charles com estudantes do projeto

Karine Rodrigues

Décadas morando pertinho do mar nunca apagaram o sertão mineiro da memória de Gilza de Melo. Com a aposentadoria, as idas frequentes a Pedra Azul, cidade do Vale do Jequitinhonha onde nasceu, deram mais cor às lembranças do dia a dia em uma região marcada por elevados índices de pobreza e desemprego e restrições de toda ordem. Ela sentiu, então, vontade de criar ali um projeto dirigido à ampliação das oportunidades em educação. E a Matemática não foi uma escolha aleatória.

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Além da licenciatura na área e da carreira como analista de sistemas, Gilza respirava Matemática na vida familiar, dividida por cerca de 50 anos com o pesquisador do IMPA Welington de Melo (1946-2016). Um dia, aproveitou a presença do então diretor-geral da instituição, César Camacho, em uma festa de aniversário no Rio e decidiu chamá-lo para dois dedos de prosa. “Até hoje fico pensando como tive coragem”, recorda.

O impulso deu resultado. A conversa clareou as ideias e garantiu apoio financeiro à iniciativa. Com Alcilea Augusto, professora aposentada do Departamento de Matemática da USP, Gilza elaborou o projeto-piloto, iniciado em junho de 2011 em cinco cidades do Vale do Jequitinhonha. “Foi um sonho. Não dormia à noite”, conta, sobre a realização,

O desejo ganhou corpo inicialmente em São João do Paraíso, Taiobeiras, Cachoeira de Pajeú, Curral de Dentro e Berizal. No ano passado, 213 alunos de 11 escolas situadas em dez cidades do Vale do Jequitinhonha acompanharam as aulas preparatórias do projeto, ministradas por 20 professores, na própria instituição de ensino.

Na região já se sabe que, durante o período letivo, as manhãs de sábado são reservadas aos estudantes interessados em se aprofundar no assunto e melhorar o desempenho na OBMEP.

Durante quatro horas, o professor apresenta aos alunos o conteúdo do Banco de Questões da OBMEP. É uma imersão, com pausa apenas para o lanche. Os resultados mostram que o impacto da iniciativa é positivo. Em 2010, antes do projeto, foram conquistadas cinco medalhas. A partir do projeto, o número anual já chegou a 16.

Para garantir o acompanhamento do sonho realizado de Gilza, além de visitas técnicas, cada professor deve apresentar o relatório de atividade das aulas ministrada. Uma olhadela nos textos enviados revela observações como “a turma é bem pequena, mas os alunos são entusiasmados” e “eles têm muita vontade de aprender”.

“Analisamos tudo para ver o andamento do projeto”, detalha Gilza, destacando que os envolvidos são voluntários, com exceção dos professores e das serventes escolares.

As aulas de aprofundamento, aos poucos, deram o que falar – e trouxeram ânimo reforçado para tirar da cama até os mais apegados à rotina descompromissada de fim de semana.

Victor Ricardo: “Mudou muito a minha mente”

“Levantar sábado de manhã dava uma preguiça…”, recorda Vitor Ricardo Silva Mendes, 15 anos. Bendito despertador. Quando começou a se dedicar com afinco ao projeto, já no 7º ano, os resultados vieram a galope:

Medalha durante três anos seguidos

“Ganhei medalha no 7º, no 8º e no 9º anos. Respectivamente, prata, bronze e prata. Depois disso, mudou muito a minha mente, o modo de ver as coisas. A OBMEP só veio para agregar”, avalia o baiano de Itabuna, que ainda nos primeiros anos do Ensino Fundamental, foi morar com a família em São João do Paraíso.

É bem verdade, relata Vitor, que a medalha conquistada por um colega de turma também serviu de catalisador para pular da cama mais cedo. O envolvimento com a OBMEP dissemina mesmo estímulos em sala de aula. Recentemente, a professora Daiana Moreira, da Universidade da Califórnia (EUA), mostrou em sua tese de doutorado defendida na Universidade Harvard (também nos Estados Unidos) que colegas de turma de estudantes medalhistas apresentam melhora no desempenho em Matemática.

Se inicialmente a conquista de outro aluno fez Vitor se debruçar com mais afinco aos estudos, logo ele mesmo se tornou fonte de inspiração. “Percebi que no 9º ano muitas pessoas passaram a se inspirar em mim e em um amigo meu, também medalhista. Elas começaram a dar mais importância e acreditar mais em si mesmas para conseguir algo com a OBMEP”, relata o estudante, destacando que, atualmente, São João do Paraíso tem vários medalhistas.

Vitor cursa agora o 2º ano do Ensino Médio no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em Salinas. Mora na residência estudantil e, de 15 em 15 dias, vai para São João do Paraíso para ficar com a família. Quando olha para trás, conclui que o projeto trouxe muitos ganhos, para vida dele, em particular, e para a cidade.

“Lá aprendi coisas que não são ensinadas na escola. Também estimulou muito a minha criatividade, meu modo de resolver as coisas. E me fez pensar além. Acho que o projeto é de extrema importância para a sociedade porque a Matemática ensinada nas escolas nem sempre é o suficiente.”

Charles participa como professor desde que a iniciativa surgiu, em 2011

Charles Marques Lima acompanhou trajetórias como a de Vitor. Desde 2011, é professor do projeto, que concilia com dois cargos na Escola Estadual Mendes de Oliveira, em São João do Paraíso, onde mora com a mulher, também professora, e a filha de 5 anos. Com a licenciatura plena em Matemática concluída em 2004, ele conta que, desde então, o ritmo em sala de aula é intenso.

“Houve um impacto significativo na cidade com relação ao interesse por Matemática: os resultados  positivos melhoraram bastante. Ao longo desse tempo, muitos alunos  que passaram pelo curso escolheram a engenharia, caminho relacionado à Matemática, e se deram bem”, relata Charles, que costuma ser procurado para conseguir vaga no projeto.

Gilza na companhia de alunos de São João do Paraíso

Entre os professores, os reflexos do envolvimento com a OBMEP também foi positivo, segundo ele. “A prova da OBMEP é desafiadora, fez com que nós, professores de Matemática, repensássemos no nível de conhecimento matemático repassado”, diz.

A situação atual relacionada ao projeto é uma incógnita. Gilza torce pela continuidade da iniciativa. “Menino pobre com vontade de estudar é o que não falta”, diz.

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