Desigualdade de gênero é realidade global na matemática
Cecília Manzoni
Um projeto financiado pelo Conselho Internacional de Ciência e liderado pela União Matemática Internacional identificou que a disparidade de gênero é um fenômeno mundial em matemática, computação e ciências naturais. A pesquisa foi feita ao longo de três anos e ouviu 32 mil cientistas homens e mulheres de 159 países para investigar o desequilíbrio de gênero. O relatório final de “A Global Approach to the Gender Gap in Mathematical, Computing, and Natural Sciences: How to measure it, how to reduce it?” mostra que cientistas mulheres têm 14 vezes mais chances de sofrer assédio. Elas também têm 1,6 vezes mais chances de terem os estudos interrompidos do que seus colegas.
O relatório afirma que a desigualdade de gênero é uma realidade global nas ciências, em particular na matemática, e que as experiências de mulheres são consideravelmente menos positivas do que as dos homens. Publicado às vésperas do Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência (11 de fevereiro), o estudo oferece uma lista de boas práticas e recomendação para professores, pais, instituições educacionais e outras organizações responsáveis por políticas científicas.
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Nascida na Itália, a pesquisadora do IMPA Luna Lomonaco já morou em sete países e afirma que “existe forte machismo na academia”. Durante sua trajetória acadêmica, relata ter se sentido muitas vezes desprezada e diminuída por professores homens, o que lhe gerou um incômodo hábito de questionar a sua própria capacidade com frequência. “É um tratamento que não vejo acontecer com colegas homens, e que vi muitas colegas mulheres relatarem. Duvidei de mim mesma milhões de vezes. A última pode ter sido ontem”, pontua ela, que recebeu o Prêmio da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) 2019, entre outros reconhecimentos.
No Brasil desde 2014, Luna considera que as mulheres do país apoiam mais umas às outras. “A sororidade é maior aqui do que na Europa. Foi difícil reconhecer, quando cheguei aqui, que eu tinha um forte componente machista. Me parece que no Brasil as mulheres estão dando um grande passo para remover este componente de si mesmas. A competição entre elas é menor. O pensamento é ‘não quero ser melhor do que você, quero que avance comigo.’”
Para a pesquisadora, a diversidade na ciência é uma questão fundamental. “Traz completude e um olhar mais abrangente para a área. Quanto mais pontos de vista tivermos sobre uma determinada questão, maiores as chances de resolver o ‘quebra-cabeça’.”
Reconhecendo a necessidade de mudar este cenário, o IMPA vem implantando iniciativas que colocam em pauta a discussão sobre gênero, como a criação do Comitê de Gênero do instituto e organização do 1º Encontro Mundial de Mulheres na Matemática (WM2), evento paralelo do Congresso Internacional de Matemáticos (ICM) 2018. Em julho do último ano, o instituto sediou o 1º Encontro Brasileiro de Mulheres Matemáticas. Coordenado pela pesquisadora Carolina Araujo, o evento reuniu 300 participantes e contou com mesas-redondas, palestras e lançamentos de livros, abrindo espaço para a discussão da sub-representação feminina na Matemática. As mulheres são menos de 12% dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq em matemática, probabilidade e estatística, as mulheres, segundo dados do portal de notícias G1. No Nível 1A, o mais alto em reconhecimento e valor de bolsa, elas são menos de 10%.
Desconforto
Além de serem minoria, Carolina Araujo diz que muitas mulheres acabam abandonando a pesquisa matemática ao longo da carreira. Segundo um levantamento da pesquisadora Christina Brech (IME-USP), as mulheres são 42% dos ingressantes na graduação na área no Brasil, mas apenas 27% entre os alunos de mestrado e 24% entre os de doutorado.
Para Tainara Gobetti, 24, aluna de mestrado do IMPA, o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência é uma oportunidade para discutir o tema. “As pessoas acabam conversando sobre isso, trocam ideias. Quando não tem muitas mulheres fazendo aquilo, você sente que você não pertence àquele lugar, fica mais inibida na hora de entrar em uma discussão com um grupo, porque parece um ambiente hostil”, disse Tainara.
“Você se sente mais acuada para fazer perguntas, tirar uma dúvida e discutir com os colegas”, afirma a aluna de doutorado do IMPA Ana Carolina de Carvalho, que já se viu muitas vezes como a única mulher na sala de aula. “Estas pequenas dificuldades que se somam, e no fim cansa. Com o tempo nos acostumamos, mas isso não é algo legal para nos acostumarmos.”
Apesar das dificuldades, Tainara percebe avanços. “Tem prêmios que dão visibilidade aos trabalhos de mulheres, e isso traz esta visibilidade para as meninas que pensam em cursar estas carreiras. Vejo que aqui no IMPA o Curso de Verão com mais meninas do que nas edições anteriores”, afirma. “A presença de Carolina e de Luna é como um espelho”, afirma Ana Carolina de Carvalho.
Meninas Olímpicas do IMPA e TM²
Outros projetos recentes do instituto, como o Meninas Olímpicas do IMPA (MOI) e o patrocínio à equipe brasileira na European Girls’ Mathematical Olympiad (EGMO), buscam atrair as jovens. Lançado no início de 2019, o MOI incentiva a participação em atividades e olimpíadas de matemática, estimulando o interesse em carreiras nas áreas da ciência e tecnologia. Criado em outubro pelo IMPA nos moldes da EGMO, o Torneio Meninas na Matemática (TM²), contou com mais de 200 estudantes e é voltado às alunas dos ensinos fundamental (a partir do 8º ano) e médio das escolas públicas e privadas de todo o país.
Divulgadora científica, Julia Jaccoud tem mais de 78 mil inscritos em seu canal no YouTube “A Matemaníaca”, onde apresenta, desde 2015, a disciplina de forma divertida. Ela só começou a abordar temas de desigualdade de gênero na ciência no terceiro ano do projeto. “Tinha medo da receptividade, porque meu público era majoritariamente masculino. Eu me senti mais confortável quando comecei a criar conteúdo sobre a questão com outra colega divulgadora científica”, conta a estudante, que participa do Curso de Verão.
Por ter feito licenciatura em matemática, a youtuber não se sentiu “diretamente afetada” durante um bom tempo de sua trajetória acadêmica. “A turma era majoritariamente feminina”, relembra. Com a criação do “Existimos”, coletivo de mulheres do Instituto de Matemática e Estatística da USP, passou a ter contato com experiências de outras estudantes e professoras. “Vi que a questão é grave, e que o ambiente pode ser extremamente hostil às mulheres. Tinha casos de professores que não deixavam meninas perguntarem ou irem ao quadro resolver problemas.”
Ainda que seja uma tarefa arriscada, tocar no assunto compensa. “Recebo mensagens de meninas que agradecem pelo trabalho. Recentemente, o pai de uma estudante de 18 anos da Unicamp disse que o canal tem ajudado a filha, que tem passado por desafios em sala de aula por ser uma das únicas meninas.”
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