Há 50 anos, Brasil fazia seu primeiro transplante cardíaco
Reprodução da Folha de S.Paulo
Por Gabriel Alves – 1º lugar na categoria Divulgação Científica do Prêmio Impa-SBM de Jornalismo 2018
Passado: O transplante, em 1968
João ainda não sabia de quem era seu coração, como declamou a Folha em manchete de 29 de maio de 1968, três dias depois de ter sido submetido ao primeiro transplante do órgão no Brasil e na América Latina, no Hospital das Clínicas da USP.
João era João Ferreira da Cunha, mas entrou para a história como João Boiadeiro. Sabia-se pouco sobre ele: era um homem simples de Mato Grosso, tinha 23 anos.
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Na Folha, a dificuldade em entender probabilidade
Sofria de insuficiência cardíaca e entendia a gravidade da cirurgia, mas sem muita profundidade. “Dizia que, se fosse para melhorar, tudo bem”, lembra Noedir Stolf, 75, médico formado na USP havia dois anos e que assistiu à cirurgia, comandada por Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993) e Euclydes Marques.
Cada passo do paciente ilustre era registrado: toma mingau e sucos pela manhã, só dorme ao som de música paraguaia, tem pressão arterial de 12 por 8, toma antibióticos, corticoides e drogas imunossupressoras, está lúcido, sentou-se no leito, tem vontade de comer arroz e feijão.
Na Folha, o transplante foi alvo de seis manchetes e mais de 20 páginas.
João virou também música, cantada pela dupla sertaneja Moreno e Moreninho:
“João Boiadeiro, coração doente/Foi despedindo do seu Mato Grosso/Foi pra São Paulo para tratamento/ E conhecer o gigante colosso/Foi receber de um coração paulista/Deixando o seu que veio do sertão/Doutor Zerbini com a mão sagrada/Foi quem fez essa transplantação.”
Após a cirurgia, teve apenas 28 dias de vida e de escrutínio público. “João morreu”, disse nova manchete, em letras garrafais, em 23 de junho.
“João Boiadeiro de coração novo/Mas durou pouco sua nova vida/Pois o destino lhe tombou por terra/Foi sepultando sua despedida/Assim termina a vida de um caboclo/Que Deus te guarde no reino da glória/Vai boiadeiro de dois corações/Fica o seu nome no livro da história.”
História que poderia ter sido diferente para o Brasil. Em 1966, o então jovem cirurgião Euclydes Marques, do HC da USP, já defendia que era hora de fazer a cirurgia.
Ele treinara em centenas de cães e alguns cadáveres e dizia que a técnica já estava bem consolidada. Sem que os animais sobrevivessem por muito tempo, porém, não conseguiu convencer seus superiores.
“Seria a solução final dos problemas do coração. Se não tem o que fazer, troca!”, conta Marques, aos 83 anos. “Transplante de coração é tudo sutura grosseira. Não tem grande mistério técnico. Qualquer macaco treinado faz.”
África do Sul, EUA, França e Inglaterra saíram na frente.
Em novembro de 1967, o americano Norman Shumway anunciou que estava preparado para fazer o primeiro transplante de coração do mundo.
Mas o sul-africano Christian Barnard foi mais ágil. Em 3 de dezembro de 1967, transplantou o coração de Denise Darvall, morta em um acidente aos 36 anos, em Louis Washansky, de 55 anos, na Cidade do Cabo. O feito consagrou Barnard. Washansky morreu 18 dias depois, de pneumonia.
A identidade do dono do coração de João Boiadeiro demorou só quatro dias para vir à tona. Última peça do quebra-cabeças da cirurgia, virou informação valiosa para os jornais. A família do serralheiro Luís Ferreira Barros, morto em um acidente, havia concordado com a doação, mas não com a divulgação, como conta Marques em seu livro “A Face Oculta dos Transplantes”.
(Houve até sugestão de testar uma chave, encontrada no bolso da roupa do doador, na fechadura da serralheria em que Luís trabalhava, para confirmar a suspeita.)
A autorização para a doação pioneira só veio após a constatação da morte cerebral, trâmite que não mudou de 50 anos pra cá. Na época, porém, discutia-se ainda sobre qual seria o momento determinante da morte de uma pessoa –alguns defendiam que ela só ocorreria quando o coração parasse de bater.
Foi no meio dessa discussão que o americano Shumway perdeu a vez para o sul-africano Barnard. Mas, num país católico como o Brasil, o apoio do papa Pio 12 caiu como uma luva: segundo o pontífice, não seria antiético desligar o respirador artificial de um sujeito já gravemente inconsciente, sem chance de melhora. Caberia, então, à medicina determinar o momento da morte de uma pessoa.
Desde 1940, o soviético Vladimir Demikhov já fazia seus experimentos e servia de inspiração para médicos de outros países. Além de transplantar corações e pulmões em cães, chegou a implantar uma cabeça de cachorro no corpo de outro –uma espécie de Cérbero, cão guardião do inferno que tinha três cabeças, segundo a mitologia grega.
Peter Medawar (1915-1987), biólogo britânico nascido no Brasil, também ajudou a trilhar esse caminho. Foi um dos primeiros a estudar com profundidade a base imunológica dos transplantes, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1960.
Mesmo com a técnica cirúrgica já apurada, ainda faltavam recursos farmacológicos para combater a rejeição ao órgão pelo novo organismo.
O fato não era menosprezado pelos médicos, mas era enorme a vontade de demonstrar a viabilidade da nova técnica –ainda mais depois da cirurgia na África do Sul.
Como conta Euclydes Marques, pensava-se em combater a rejeição a posteriori, como uma doença como tantas outras. “Nessa hora, o médico não está tão preocupado com o paciente, mas em resolver um problema”, diz.
Passada a euforia inicial, houve um desencanto diante dos resultados negativos. Foram 100 transplantes em 1968 em todo o mundo, 50 em 1969, 20 em 1970 e 10 em 1971.
Uma espécie de moratória durou uma década no mundo e quinze anos no Brasil. A rejeição parecia intransponível e havia outros desafios na cardiologia –estávamos na era de ouro do cateterismo, técnica que remove entupimentos nas coronárias.
A novidade financeiramente mais vantajosa roubou o breve protagonismo do transplante cardíaco, que só renasceu no mundo em 1980.
A responsável foi a ciclosporina, droga contra a rejeição que acabara de ser lançada. A tríade formada pela nova droga, a antiga azatioprina e os corticoides deu fôlego à área, diz o cardiologista Fernando Bacal, que coordena os transplantes cardíacos do Incor e do Hospital Israelita Albert Einstein.
Outros avanços foram a biópsia miocárdica, que permitia avaliar o coração sem necessidade de cirurgia, e a melhora dos métodos de conservação do coração doado, que possibilitou a busca em outras cidades e estados.
No Brasil, o primeiro transplante dessa nova fase foi feito em 1984, no Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. O Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP, inaugurado em 1977 graças à verba obtida logo após o transplante de João Boiadeiro, retomou seu programa em 1985.
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