Navegar

30/10/2020

Marcelo Viana resenha o livro ‘A Fórmula Preferida do Professor’

Foto: Divulgação IMPA/ Tomás Rangel

Existe alguma relação entre a objetividade matemática e a subjetividade artística? Este foi um dos pontos abordados na resenha que o diretor-geral do IMPA, Marcelo Viana, publicou na revista Quatro Cinco Um sobre o livro “A Fórmula Preferida do Professor”, da escritora Yoko Ogawa. Lançado no Brasil pela editora Estação Liberdade, o romance japonês usa a disciplina para desenvolver as emoções e trajetórias das personagens. Viana destaca que a escolha ousada da autora surpreende. “Creio que para a maioria das pessoas poucas coisas parecem mais distantes e alheias do que emoções e teoremas.”

O livro conta a história de um professor de matemática da universidade, que após sofrer um grave acidente de trânsito, perde a memória recente e se aposenta. A narradora é a faxineira contratada para cuidar do professor, assumidamente avessa à matemática. O filho dela, apelidado de Raiz por causa do formato da sua cabeça, que lembra a uma raiz quadrada, passa a se aproximar do professor ao fazerem juntos a lição de casa. “É a história da construção de um triângulo incomum”, pontua Viana no texto.

Leia mais: INCTMat inicia atividades para desenvolvimento profissional
Professor Luiz Felipe Lins é eleito Educador do Ano de 2020
Matemáticos desvendam segredo do dodecaedro

Ainda que páginas do livro sejam ocupadas com desafios da disciplina, Viana destaca que o romance não é uma obra sobre matemática. “Ele é, acima de tudo, um conto pungente sobre perda e resiliência. Uma história de perdas trazidas pela passagem do tempo e pelas vicissitudes da vida, e de apego à existência e à busca pela felicidade e pelo afeto.”

Leia a resenha na íntegra:

Teoremas e emoções

Romance faz da matemática o improvável catalisador afetivo entre velho professor em declínio, sua faxineira e o filho dela

Álvaro de Campos, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, escreveu: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso”. Enquanto a arte é a expressão plástica da subjetividade humana, a matemática é o reino da objetividade abstrata, das verdades absolutas e eternas. Nós que vivemos a matemática sabemos que os dois domínios se sobrepõem muito mais do que se pensa. Nem poderia ser de outra forma, sendo ambos igualmente criações do espírito humano. Mas nós somos “pouca gente”: creio que para a maioria das pessoas poucas coisas parecem mais distantes e alheias do que emoções e teoremas.

Assim, surpreende a ousadia de Yoko Ogawa ao fazer da matemática o catalisador da evolução de emoções e relações pessoais de A fórmula preferida do professor. É a história da construção de um triângulo incomum. Uma quarta personagem orbita a ação de longe, e só bem tarde temos noção de seu real significado.

O Professor, que ensinava matemática na universidade, foi aposentado após sofrer um grave acidente de trânsito, que o privou da memória recente: depois disso, ele só consegue se lembrar dos últimos oitenta minutos. A narradora, faxineira contratada para cuidar do Professor, vai gradualmente se afeiçoando ao velho mestre de uma disciplina que, confessa, “detestava desde o banco escolar, a ponto de sentir calafrios só em ver o livro-texto”. E o filho desta, menino de dez anos, é apelidado carinhosamente pelo Professor de Raiz, “por causa da cabeça achatada que lembrava o símbolo √ da raiz quadrada”. O apelido pega e a própria mãe o usa para se referir ao filho.

Não é um triângulo equilátero. O Professor é o sol desse sistema planetário, essencialmente imóvel no espaço e no tempo, por força da amnésia. Com saúde e carreira universitária arruinadas pelo acidente, vive existência solitária, interessado apenas nas propriedades dos números. Participa de concursos de resolução de problemas matemáticos, publicando frequentemente suas soluções, o que também lhe proporciona algum dinheiro. Suas constantes perguntas sobre números (“Que número você calça?”) despertam a surpresa e, depois, a curiosidade da faxineira. Seu carinho por crianças o leva a insistir que traga Raiz com ela para o trabalho. Ao manifestar o seu interesse ajudando o garoto com as tarefas de matemática, descobre que ambos têm um interesse comum pelo beisebol.

Lembretes

À faxineira e ao filho compete a tarefa permanente de reconstruir uma relação que o velho matemático esquece oitenta minutos depois. Nisso, são ajudados pelos inúmeros lembretes que o Professor prega com clipes em seu terno. Ao fazerem isso, vão gradualmente forjando uma afeição inesperada. O passo crucial da caminhada emocional da faxineira ocorre de um modo que qualquer matemático entende muito bem. Raiz pede ao Professor que conserte o velho rádio para poderem escutar partidas de beisebol juntos. O mestre concorda, com a condição de que ele “pague” calculando a soma 

1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + 8 + 9 + 10 

dos dez primeiros números inteiros. O menino faz a conta somando-os um a um e obtém o resultado 55. O Professor elogia, mas aponta que se fosse uma quantidade de inteiros muito maior do que dez esse método ficaria inviável, e pede que Raiz busque um método de cálculo que possa ser usado para qualquer quantidade de inteiros. O menino desiste rapidamente da tarefa e é a mãe que a enfrenta, com “um inesperado senso de desafio”.

Seguindo sugestão de Raiz, ela separa o 10, de tal modo que fique uma quantidade ímpar de inteiros

 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + 8 + 9

com o 5 na posição central, quatro números à frente e quatro números atrás. Nesse momento, ainda sem entender por quê, ela sabe que resolveu o problema*: “Senti então uma mágica que nunca experimentara na minha vida. Uma lufada de vento varreu o deserto devastado em que me encontrava, e uma senda virgem se abriu ante meus olhos. […] Soube naquele momento que recebi a benção chamada de inspiração”. Todo matemático passou alguma vez por essa experiência, e não esqueceu mais.

Diversas pérolas como essa movimentam o percurso emocional dos personagens, incluindo algumas surpresas até para um matemático profissional. Durante uma partida de beisebol, o Professor observa que estão nos assentos 7-14 e 7-15 do estádio, e aponta que os números 714 e 715 têm propriedades interessantes, de que eu nunca tinha ouvido falar.

Em 1930, o lendário jogador de beisebol Babe Ruth alcançou a marca de 714 home runs em uma só temporada. O recorde durou até 1974, quando Hank Aaron alcançou o seu 715º  home run na temporada. Do ponto de vista matemático, os dois números têm a relação curiosa de que as somas de seus divisores primos são iguais. 

De fato,

714 = 2 x 3 x 7 x 17 e 715 = 5 x 11 x 13

e temos que

2 + 3 + 7 + 17 = 5 + 11 + 13.

Pares de números consecutivos com esta relação são chamados pares de Ruth–Aaron e são muito raros. Não sabemos sequer se existe uma quantidade finita ou infinita deles, mas os matemáticos Carl Pomerance e Paul Erdös provaram em 1978 que “o conjunto de pares de Ruth–Aaron tem densidade zero no infinito”, o que quer dizer que eles vão se tornando mais raros conforme os números crescem.

Mas A fórmula preferida do Professor não é um livro sobre matemática. Ele é, acima de tudo, um conto pungente sobre perda e resiliência. Uma história de perdas trazidas pela passagem do tempo e pelas vicissitudes da vida, e de apego à existência e à busca pela felicidade e pelo afeto.

Busca do Professor, tragicamente privado da carreira, da saúde e do amor, faz do interesse pelos números e da ternura pelas crianças suas razões de viver. A da faxineira, mãe solteira oriunda de família disfuncional, juntamente com o filho, encontra no velho matemático um foco para admiração e carinho. E a de Raiz, criança solitária de pequena família humilde, o Professor acaba constituindo a única figura paternal e uma fonte de inspiração. 

A matemática, essa, é um instrumento na expressão de suas buscas. E, acredito, um lembrete de que certas verdades, a respeito do universo lá fora e daquele que carregamos dentro de nós, são imutáveis.  

Leia também: Brasil conquista 27 medalhas na olimpíada Ibero-americana
Festival Nacional da Matemática abre inscrições para oficinas