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14/10/2021

‘Meu único superpoder é não desistir’, diz doutora do IMPA

 

Tendo conquistado recentemente o título de doutora em matemática pelo IMPA, Clarice de Souza Ferreira Netto, de Cabo Frio (RJ), ainda se surpreende com os espaços que vem conquistando em sua trajetória profissional. Para alguém que frequentou modestos colégios públicos da Região dos Lagos fluminense que não se destacavam, certos feitos eram inimagináveis. 

“Sempre estudei em escolas públicas, desde o jardim de infância até o doutorado. Mas não foram escolas públicas estrelas, de onde saem  medalhistas da Obmep, essas que encabeçam as listas de aprovados em vestibular…estudei em colégios comuns. Essa é minha formação base”, conta. “Não tenho nada especial: não vim de escola importante, não ganhei nenhuma medalha olímpica, minha família é normal, da classe C. Meu único superpoder é não desistir.” 

Munida desta perseverança, a doutoranda, filha de professores de escola pública, concluiu mais uma importante etapa da sua formação. No dia 13 de outubro, ela defendeu a tese “Compatibilidade de operadores Nijenhuis com estruturas de Dirac e algebróides de Courant”, por videoconferência. 

Clarice define os últimos dez anos da sua vida, que englobam desde a graduação em matemática na Universidade Federal Fluminense (UFF) até o doutorado no IMPA, como uma “montanha russa de emoções”. “Fui incrivelmente feliz muitas vezes. Fiz muitos amigos, viajei para outros países, aprendi tanta coisa, resolvi tantos problemas, me conectei profundamente com tantas histórias…”, relata. 

Sua primeira viagem internacional veio graças à matemática, através do programa “Ciência sem Fronteiras”, do qual participou ainda durante a graduação, em 2012. A cabofriense viveu por um ano em Madrid, na Espanha. “Foi uma experiência determinante na minha vida acadêmica. Lá participei de um programa de ‘iniciação científica’ que durou os dois últimos meses, onde conheci a área de geometria simplética, na qual estou até hoje. Meu supervisor, David Martin de Diego, me apresentou Paula Balseiro, que viria a se tornar minha orientadora de mestrado, e foi superimportante na minha caminhada”, lembra.

Doutoranda sentiu o impacto da desigualdade de gênero na área 

Mas, além de viver grandes experiências, a doutoranda sentiu o impacto da desigualdade de gênero no campo, o que lhe trouxe situações desagradáveis. “Vivi momentos complicados, que foram desde duvidarem da minha capacidade intelectual até o assédio. O efeito disso em mim foi a total falta de confiança na minha capacidade intelectual, mas cada mulher sente ao seu modo”, compartilha. 

O amparo de algumas colegas e professoras durante a caminhada, no entanto, suavizou, em parte, essas dificuldades. “Tive a sorte de encontrar pessoas maravilhosas que confiaram em mim enquanto eu desconfiava – ou melhor, tinha plena certeza de que não era capaz. Uma delas foi a minha orientadora de mestrado, Paula Balseiro. Se eu estou aqui hoje foi porque ela acreditou em mim e dedicou tempo em me ensinar o que ela sabe. Ela é uma grande inspiração para mim.”

Envolvida com a discussão sobre desigualdade de gênero nas ciências, Clarice ajudou a organizar o 1º Encontro de Mulheres Matemáticas do IMPA, em maio deste ano. “O encontro foi maravilhoso. É muito importante ter um espaço para compartilhar nossas histórias e encorajar que novas sejam criadas.” Ela acredita que este tipo de iniciativa está crescendo, e pode sinalizar uma mudança de cenário. “Faz parte do momento atual onde mais mulheres estão acessando esse espaço, que outrora estava completamente dominado por um perfil diferente do nosso.”

Sua própria trajetória pessoal simboliza esta mudança. “São mais de 10 anos dedicados ao crescimento profissional, tentando fazer parte de uma elite intelectual que não foi pensada para uma mulher que veio de escolas públicas normais. O lugar que ocupo hoje, o título que acabei de conquistar, não foi pensado pra mim. Esse não seria naturalmente o meu lugar. Mas eu estou aqui”, celebra.

Tese trata da geometria de Poisson 

Orientada pelo pesquisador do IMPA Henrique Bursztyn e co-orientada por Thiago Drummond, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a tese da doutoranda pertence à área de Geometria de Poisson. Durante a pós-graduação, Clarice estudou a compatibilidade de operadores Nijenhuis com estruturas de Dirac e algebróides de Courant. “Explorei propriedades e exemplos destas novas estruturas geométricas obtidas a partir das estruturas de Dirac e algebróides de Courant adicionando uma ‘informação extra’ dada pelo tensor Nijenhuis. Abordei resultados como integração e relação com a geometria holomorfa de Dirac na tese.”

A proximidade com as estruturas de Dirac aconteceu durante o mestrado, e foi aprofundada no doutorado. “Gostei bastante do tema porque ele tem uma ligação com a mecânica clássica, já que em alguns casos a estrutura de Dirac descreve um sistema integrável”, explica. “No doutorado, explorei essas estruturas sob um ponto de vista mais geométrico e deixando de lado sua aplicação física, por ora. Os resultados da tese abriram muitos caminhos, tenho perguntas interessantes para responder por uns bons anos.”

Assim como para muitos de seus colegas, a pandemia da Covid-19 entrou no caminho do desenvolvimento da sua pesquisa de doutorado. Além de ter atrasado sua defesa, afetou o dinamismo das conversas com os orientadores do trabalho, que antes aconteciam “a qualquer momento nos corredores do IMPA” e, depois, passaram a ter hora marcada via plataformas online. “O quadro-negro e as conversas casuais fizeram falta. A pandemia mudou o ritmo de trabalho e o acesso a boas discussões matemáticas, necessárias ao desenvolvimento de qualquer projeto de pesquisa.  Afetou a construção de parcerias de trabalho, ida a congressos. Perdi contato com vários colegas. Tudo isso pesou negativamente.”

Neste contexto, o contato próximo com os orientadores foi um forte aliado na empreitada. “Ser aluna do Henrique foi uma oportunidade única de aprendizado e troca. Por causa dele – que me guiou tão bem durante todo este processo, me deu um problema interessante para trabalhar e tem uma rede tão única de colaboradores e ex-alunos -, vejo um caminho a seguir. Thiago, meu co-orientador,  foi a mais grata surpresa do meu doutorado. Inicialmente não iríamos trabalhar juntos, mas ele apareceu na hora certa e foi fundamental para eu chegar aqui. Muito paciente, sempre estava disposto a me ouvir falar, mesmo que eu não conseguisse formular uma frase matemática que fizesse sentido. Sou muito grata aos dois, são um exemplo pra mim.”

Apaixonada pelo processo de aprender, Clarice pretende continuar na pesquisa acadêmica agora que encerrou mais um capítulo de sua trajetória, e retribuir, de alguma maneira, o investimento público que recebeu durante a sua formação.  “Amo estar sempre aprendendo, descobrindo uma coisinha nova mesmo que minúscula. Ainda tenho muito para aprender e para contribuir em minha área”, conclui.