História inspiradora: Thaís Nascimento, de Campo Verde (MT)
Os pinguinhos de tinta que, cuidadosamente, a cearense Maria Aparecida da Silva Nascimento deixava cair em um pedacinho de papel ajudaram sua única filha, Thaís Silva do Nascimento, a desenhar as letras e os números, antes mesmo de ir para a escola.
Mas, naquela casa simples de um assentamento no interior de Mato Grosso, a menina aprenderia não apenas a ler, escrever e fazer contas. A maior lição ensinada pelos pais era que somente os estudos poderiam criar oportunidades de uma vida melhor.
Hoje, aos 25 anos a jovem se dedica à conclusão do Doutorado em Matemática na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2014, foi aprovada para a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), onde dá aulas de Álgebra, Álgebra Linear, Cálculo e Matemática Elementar como professora assistente.
“Quando era pequena, passava em frente à escola agrícola e pensava: ‘um dia vou estudar aqui’. Mas aí veio a matemática e mudou tudo”, conta a moça.
Trajetória
E como mudou! A trajetória de Thaís parece roteiro de cinema. Nascida em Mombaça, no Ceará, é filha mais velha de Maria Aparecida e Ari. O casal teve três filhos: uma menina que morreu aos quatro meses – “acho que foi meningite, mas não tinha médico na cidade para dizer”, lembra a mãe – e um menino prematuro que sobreviveu apenas um mês.
Cida teve cólera durante a gravidez. A tristeza com a perda dos filhos e a seca na cidade, a 600 quilômetros de Fortaleza, empurraram a família para longe do Ceará. Ari decidiu que iriam até Brasília e, de lá, tomariam o primeiro ônibus que partisse para outro lugar.
O pai já conhecia a região e começou a procurar emprego. Foram quase dois anos até aderirem ao Movimento Sem-Terra e tentar uma vaga em um assentamento. Cida fez uma ressalva: só aceitaria se não houvesse invasão de fazendas.
Os três foram, então, morar em um acampamento à beira da estrada, com mais de mil famílias. “Ficamos 40 dias em um acampamento em Nova Olímpia, perto de Tangará da Serra, e conseguimos.
uma vaga no Assentamento 28 de Outubro, em Campo Verde, onde moramos dez anos. A escolinha mais próxima ficava a 15 quilômetros e a condução passava às 4h40 da manhã”, conta.
Àquela altura, porém, a menina já sabia ler e escrever, gra- ças aos tais pinguinhos que a mãe fazia em cadernos para ela copiar. “Era muito cansativo. Às vezes, meus pais combinavam de me deixar dormir até mais tarde, para ‘descansar o juízo’. Mas eu acordava na hora e saía correndo. Não queria perder a aula de jei- to nenhum”, conta hoje a professora.
Ao que tudo indica, Thaís estava destinada ao magistério desde o berço. O primeiro presente que ganhou da avó materna, antes de completar um mês de vida, foi um caderno. Talvez fosse uma aposta no futuro, já que a mãe só tinha completado o 3º ano do Ensino Fundamental e planejava “fazer o que fosse preciso” para a menina ter uma profissão.
“Fui alfabetizada por minha mãe. Ela me ensinou até a fazer prova real, sem saber o que era isso. Até o 8º ano do Ensino Fundamental, estudava comigo, mesmo tendo parado na 3ª série. Era muita vontade de me ver aprendendo”, lembra.
“GRAÇAS AOS MEUS PAIS, SEMPRE PUDE ME DEDICAR INTEGRALMENTE AOS ESTUDOS. E ISSO, LÓGICO, FEZ TODA A DIFERENÇA NA MINHA VIDA”
Desde o primeiro dia em uma sala de aula convencional, Thaís chamou a atenção dos professores. Com um mês de escola, a diretora convocou Cida para avisar que tiraria a menina do antigo C.A. e a avançaria para o 1º ano. Como já sabia ler e escrever, ela assumia o quadro-negro para ajudar os colegas. No fim do período, com seis anos, Thaís já concluía a 2º série.
“Queriam que eu voltasse ao pré-escolar por causa da idade. Não se conformavam de eu estar tão adiantada. Minha mãe foi lá e brigou por mim. Decidiram que eu iria fazer uma prova e que, se tirasse mais de 9, não precisaria fazer as séries anteriores. Tirei 9,5, mas, mesmo assim, tive de fazer todos os exercícios dos ou-tros anos”, lembra a moça.
A partir daí, a vida escolar seguiu sem maiores atropelos, mas com as dificuldades típicas das escolas rurais: distância de casa, estradas ruins, professores despreparados…
A família se virava como podia: Ari, a partir de 2001, começou a trabalhar como mototaxista. Segundo Thaís, o dinheiro guardado rendeu algumas cabeças de gado que, anos depois, custearam a moradia em Cuiabá, onde ela viria a fazer a faculdade.
Além de cuidar do gado, Dona Cida sempre arrumava tempo para ajudar Thaís nos estudos e não a deixava se aproximar das tarefas domésticas. “Graças aos meus pais, sempre pude me dedicar integralmente aos estudos. E isso, lógico, fez toda a diferença na minha vida.”
Matemática no DNA
Em 2005, Thaís estava no 2º ano do Ensino Médio quando um professor propôs que ela participasse da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP).
“Este professor, Sidney, foi muito importante. Ele não só me estimulou a fazer a prova, como imprimiu e me entregou as listas de problemas disponíveis no site da OBMEP. Disse que era para eu treinar em casa e tirar as dúvidas com ele na escola. Ele acreditou e investiu no meu potencial”, diz.
A adolescente nem se achava tão talentosa assim para a Matemática. Afinal de contas, todos aqueles problemas que levava tempo para resolver, o pai Ari batia o olho e dava a resposta de cabeça…
Mas o DNA falou mais forte e ela encarou a missão. Achou a prova difícil, mas, na 2ª Fase, conquistou uma medalha de prata. Estava carimbado o passaporte para o Programa de Iniciação Científica Jr. (PIC) no ano seguinte, na UFMT.
Na primeira aula do PIC, em julho de 2006, Thaís e Cida saíram de Campo Verde com R$ 30 na carteira para passar dois dias em Cuiabá.
“Descobrimos que o PIC tinha uma bolsa de R$ 100, que funcionava como ajuda de custo. Voltamos para casa abonadas”, brinca Cida.
Em uma das viagens para Cuiabá, Thaís pediu à mãe para ir ao shopping. Dona Cida deixou. Na volta, a menina trazia um milk-shake, que ela até então não havia experimentado.
“Em 2005 e 2006, quando pisei na universidade para as aulas do PIC, pensei: ‘É, acho que não quero mais fazer a escola agrícola…’ Aqui, o professor Martinho [da Costa Araújo] me adotou. Foi ele quem fez minha inscrição para o vestibular. Lembro como se fosse hoje, quando ele disse à minha mãe: ‘Essa menina vai passar no vestibular, estudar aqui e, com 21 anos, estará formada.’
“A OBMEP MUDA A SUA FORMA DE PENSAR E DE ESTUDAR. É UMA COISA PARA A VIDA TODA”
Aos 16 anos, Thaís ingressou na licenciatura em Matemática. Durante o curso, foi monitora do PIC e corrigiu provas da OBMEP. Durante a pós-graduação, foi professora orientadora do Programa por dois anos.
Hoje, toda vez que conversa com adolescentes, incentiva a participação na olimpíada. “A OBMEP muda a sua forma de pensar e de estudar. É uma coisa para a vida toda. Só pude fazer o Mestrado e o Doutorado em outro estado porque tinha uma bolsa de estudos garantida pela OBMEP, por meio do PICME. Sou muito grata à Olimpíada.”
Segundo o professor Martinho, Thaís já se destacava desde o primeiro dia de aula, apesar de muito tímida. “Era curiosa, fazia perguntas elaboradas. Tinha um talento ali, mas precisava de estímulo para desabrochar. Você precisa estar atento o tempo todo, porque os jovens que vêm para o PIC, em sua maioria, enfrentam as maiores barreiras para chegar até aqui.”
No dia da formatura, Cida teve “um suadouro” e mal conseguiu chegar à festa. O namorado Nailton, sitiante em Campo Verde, não foi tão longe nos estudos, mas também morre de orgulho da jovem professora, e nem se incomoda quando ela comenta que sonha em batalhar uma bolsa fora do Brasil.
“Já avisei a ele: se a nota dela baixar, sou eu quem termina o namoro”, ameaça, em tom de brincadeira, a orgulhosa mãe.
Mas, logo Thaís tranquiliza a mãe: “Casamento só depois de concluir o Doutorado”.