História inspiradora: Luiz Felipe Lins, Rio de Janeiro (RJ)
Aula do professor Luiz Felipe Lins, em uma das turmas de 7º ano da Escola Municipal Francis Hime, na Taquara, Rio de Janeiro é uma brincadeira. Divididos em grupos de quatro ou cinco, os alunos desenham o tabuleiro, pintam os pinos, recortam os dados. Parece divertido. Mas a lógica ali vai além do óbvio: o jogo ajuda a garotada a aprender a somar números negativos, tarefa que muitos ainda não dominam. Enquanto andam três casas para frente e duas para trás, eles assimilam mais um capítulo básico de matemática e somam conhecimentos para sonhar com um futuro melhor. Aparentemente, estão na trilha certa. Luiz Felipe é um dos professores campeões da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Foi premiado em 2007, 2009, 2010, 2011, 2012, 2014 e 2015. Seus alunos já conquistaram mais de 400 premiações (medalhas ou menções honrosas). Na época de estudante, ele era tão bom com letras quanto com números.
“Mas logo percebi que, fazendo matemática, não ia ter problema para arrumar emprego. No segundo ano da faculdade, já dava aulas”, conta.
Luiz Felipe fez licenciatura em matemática na UERJ, coroando uma vida escolar toda na rede pública. Passou pelas escolas municipais Machado de Assis, em Santa Teresa, Alina de Britto e Silveira Sampaio, em Curicica; e pelo Colégio Estadual Brigadeiro Schortch, na Taquara. Um ano após se graduar na universidade, conseguiu a primeira matrícula no município. A segunda veio três anos depois, em 1999. Adivinhe para onde foi lotado, logo após ser empossado?
“Minha primeira escola foi justamente a Silveira Sampaio. Quando cheguei lá, vi que não tinha mudado nada. A matemática era ensinada como decoreba, naquele sistema de cuspe e giz. Mas já havia um grupo de professores que queria mudar. E me juntei a eles.”
O grupo foi, então, fazer o Projeto Fundão, uma iniciativa da UFRJ para capacitar professores de matemática com novas técnicas de ensino e novas possibilidades de materiais didáticos. Começava ali a escalada de Luiz Felipe rumo ao sucesso nas olimpíadas de matemática.
“Entendi que minha missão seria tornar o aprendizado da matemática uma atividade prazerosa e desafiadora. E isso vale tanto para os alunos com um talento natural para os números quanto para aqueles que não gostam, não entendem ou acham que não gostam e não entendem.”
No dia a dia, Luiz Felipe não se dedica apenas aos que assimilam as lições com mais rapidez. Ele adora dar aulas para turmas de alunos com dificuldades de aprendizado. Como exemplo, lembra um grupo que chegou à Francis Hime em 2009, para cursar o 6º ano. A maioria era semialfabetizada e tinha problemas de dislexia e discalculia. Ao chegarem ao 8º ano, já estavam no mesmo nível das demais turmas.
“Foi emocionante. Um grupo de professores resolveu que esse seria o grande desafio da escola. Os alunos sequer sabiam fazer as quatro operações básicas de matemática. Para ensiná-los, tive que aprender a construir conceitos das séries iniciais, como o uso do material dourado, de forma que ficassem atrativos para aquela faixa etária. E deu certo”, orgulha-se.
E não se trata de um orgulho em vão. Em uma visita à Francis Hime, Luiz Felipe mostra duas turmas de 7º ano. Em uma delas, o número de candidatos a disputar as olimpíadas de matemática cresceu na mesma proporção da alegria da garotada em, finalmente, ter aulas com o professor mais célebre da escola. Na outra, com um grupo grande de repetentes, o trabalho é mais lento, mas não menos gratificante.
“NÃO TEM COISA MAIS LEGAL DO QUE VOCÊ PERCEBER QUE AQUELE GAROTO QUE CHEGOU DIZENDO QUE NÃO GOSTA DE MATEMÁTICA AGORA FAZ OS EXERCÍCIOS COM FACILIDADE”
“Não tem coisa mais legal do que você perceber que aquele garoto que chegou dizendo que não gosta de matemática agora faz os exercícios com facilidade e já demonstra interesse em participar das competições”, diz ele “Aqui e ali você identifica um talento e sabe que, sem sua ajuda, talvez ele se perdesse por aí”.
Luiz Felipe conta que o pulo do gato é fazer os alunos compreenderem que a matemática faz – e fará – parte de seu cotidiano. Em vez do modelo tradicional de fórmulas, equações, conjuntos e afins, ensina-se o raciocínio lógico.
“Para que o cara precisa saber algarismos romanos tão a fundo? Nem nos relógios usamos mais… Você sabe como escreve 5.037 em algarismos romanos? Eu não. E a teoria dos conjuntos? Quantas vezes você se lembrou dela depois que saiu da escola? Essa era a matemática do século passado. Hoje mudou. O aluno tem que aprender a raciocinar, a pensar de maneira lógica. E isso vale para a vida. Quem sabe raciocinar tira de letra qualquer matéria.”
Tanto que muitos dos jovens treinados por Luiz Felipe tentam a prova do Enem no 9º ano do Ensino Fundamental e conseguem nota para ingressar na universidade. O time olímpico tem aulas aos sábados e pode tirar dúvidas com o professor até pela internet, em grupos de estudo de matemática espalhados pelas redes sociais.
O técnico também voltou aos bancos escolares: está fazendo mestrado na UniRio.
“Graças às olimpíadas, pude tentar o mestrado. Tudo que tenho hoje devo à matemática. Então, nada mais justo do que dar a outras crianças a mesma chance de sonhar.”
“A MATEMÁTICA ABRE UMA INFINIDADE DE PERSPECTIVAS DE FUTURO”
O tudo a que o professor se refere é carro e casa própria, além da carreira brilhante. Nada mal para o menino criado por uma tia faxineira que recompensava as boas notas com medalhas da Rua da Alfândega, zona de comércio popular do Rio de Janeiro. A influência familiar foi decisiva para o bom desempenho do garoto criado em Jacarepaguá, e até hoje, faz toda a diferença no ensino.
“Os pais são fundamentais. Às vezes, a criança chega à escola dizendo que o pai acha uma bobagem gostar de matemática porque não leva a nada. E eu respondo que não é bem assim. A matemática abre uma infinidade de perspectivas de futuro.”
Aos 44 anos, Luiz Felipe segue uma rotina puxada. Além da Francis Hime, dá aulas em um colégio particular, na Barra. Nos dois empregos, lida com turmas do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio e calcula que já teve cerca de 5,4 mil alunos. Para ele, não faz a menor diferença estar diante de uma sala de jovens com mais habilidade para os números ou de crianças com dificuldades.
“Minha filosofia é construir conhecimento, não importa em que medida. Lógico que alguns assimilarão mais, e outros menos. Faz parte da vida. Mas todos devem ter a mesma chance de aprender. Não é justo que centenas, milhares de talentos se percam por falta de uma única oportunidade.”
Tão certo quanto dois e dois são quatro.
Escola Municipal Francis Hime: destaque na OBMEP e sétima colocada do Rio no IDEB 2011
A Escola Municipal Francis Hime, na Taquara, é uma instituição peculiar. Seu nome é uma homenagem ao avô do autor de sucessos como “Vai passar” e “Trocando em miúdos”, entre outros. Francis Walter Hime, que viveu de 1885 a 1948, doou terras de sua fazenda para construir uma escola destinada aos filhos dos colonos. Somente no atual prédio, o colégio já está instalado há 74 anos. Dizem que foi inaugurado pelo então presidente Getúlio Vargas, visitante frequente dos domínios da família Hime.
Na época, os alunos eram oriundos de uma área rural que o Rio pouco conhecia, aos pés do Maciço da Pedra Branca, hoje um parque estadual e área de preservação ambiental. A beleza do lugar, porém, atraiu uma classe média, que passou a construir ali condomínios de luxo. Sem saída, os sitiantes abandonaram suas pequenas lavouras e buscaram outros empregos. Na geografia da região, as mansões ficaram de um lado da rua e uma favela que cresce em progressão geométrica, do outro.
E são justamente os moradores da comunidade – e de outros pequenos núcleos da região – que formam a clientela da escola. Quase mil crianças e adolescentes, em turmas que, não raras vezes, ultrapassam o limite de 40 alunos por turma. Conseguir uma vaga na Francis Hime
é quase tão difícil quanto ganhar uma medalha na OBMEP. Diaria-
mente, a diretora Márcia Alves precisa dizer “não” a famílias interessadas em garantir aos filhos um dos melhores ensinos do município.
“Quando ligamos para dizer que há uma vaga, as mães choram. A área é carente de escolas, e a nossa, sem modéstia, é a melhor”, diz a diretora.
O grau de excelência da escola está diretamente ligado aos ótimos resultados na OBMEP. Cartazes da Olimpíada e banners com os resultados das competições anteriores estão espalhados por toda parte. Muitos pais, quando chegam para conhecer o espaço, perguntam logo se é “ali que se formam os campeões de matemática”. A paixão pela matéria é tão grande que a Francis Hime promove olimpíadas internas para alunos a partir do 4º ano.
“Não estamos preocupados em fazer sucesso na OBMEP. Queremos mostrar que a olimpíada pode abrir um futuro profissional com que os alunos nem sonhariam”, conta Márcia.
A diretora-adjunta Emília Ferreira lembra que, na olimpíada interna, a premiação é feita em uma festa, com a ajuda dos pais, que doam doces e salgados para celebrar os campeões. Empresas da região também colaboram com a escola.
“Os pais dizem que querem os filhos aqui para garantir a eles o melhor ensino. Estão certos em cobrar esse direito. Pena que nem todas as escolas podem oferecer essa qualidade”, lamenta.
O ensino de primeira foi o que fez a coordenadora Leda Lins inscrever as duas filhas para estudar na Francis Hime – ambas cursam universidades públicas hoje. O time de matemática é um dos orgulhos. Além de Luiz Felipe Lins, multipremiado pela OBMEP, Regina Célia e Marcelo Bastos atuam na linha de frente do ensino dos números.
“Às vezes, as pessoas me encontram no supermercado e perguntam se trabalho aqui. Aí dizem: ‘Você é a coordenadora da escola dos meus sonhos!’, conta Leda, orgulhosa.
Como toda escola em área carente, vez ou outra a direção da Francis Hime precisa agir para pôr fim a conflitos. Mas a escola é linha dura. Celulares e demais aparelhos eletrônicos são proibidos em sala. Sem uniforme completo ninguém ultrapassa o portão do belo prédio em estilo colonial. E ai do estudante flagrado fazendo bagunça no ônibus, por exemplo.
“Na área, todos sabem quem são os nossos alunos. Se um deles não se comporta bem, o despachante do ônibus bate aqui na porta e avisa. Já viu, né?”, conta Emília.
Os alunos reagem bem ao rigor. Entre eles, também é visível o clima de camaradagem. Os premiados na OBMEP, por exemplo, são celebridades locais e raramente ouvem piadas por gostarem de estudar. Até porque, a maioria não faz o estilo nerd. Eles gostam de ouvir música, conversar nas redes sociais e jogar videogames. E, lógico, de se distrair com problemas, como os dos bancos de questões da Olimpíada.
Lorayne Santos e Laura Ribeiro, ambas de 13 anos, do 8º ano; Victor Marinho e Luana Pinto, os dois de 11, do 7º ano; e Tiago Brito, de 13, do 9º ano, fazem parte da novíssima geração de campeões olímpicos da Francis Hime. Adoram quando um aluno mais novo lhes pede ajuda, e curtem mais ainda quando observam que o aprendiz assimi-
lou facilmente a matéria graças a esse auxílio.
“As pessoas nos perturbam para fazer contas difíceis, mas faz parte”, diz Lorayne.
“Acho graça quando vejo alguém enrolado com uma conta. Já fiz de cabeça e a pessoa está lá, tentando resolver”, diverte-se Luana.
“Adoro descobrir o resultado antes e ficar esperando chegarem lá”, confessa Laura.
Além das brincadeiras com quem não nasceu com a mesma habilidade para os números, o que eles esperam da matemática? Victor anda com os prêmios da OBMEP numa sacolinha. Um patrimônio do qual tem indisfarçável orgulho. Nas medalhas e diplomas pode estar garantindo um sonho: o de ser o primeiro integrante da família a chegar à universidade. Ele e Tiago – que gosta de conversar enquanto monta e desmonta um polígono mágico – planejam cursar Engenharia Mecatrônica.
“Sem a OBMEP, seria mais difícil”, admite Tiago. “Sabe por que gosto de matemática? Porque o resultado está lá, mas você tem mil caminhos para chegar até ele. Dois mais dois são quatro, certo? Oito menos quatro, também. E a raiz quadrada de 16, idem. Na vida, também é assim. O nosso objetivo está lá na frente. Como vamos alcançá-lo? São muitos caminhos. A OBMEP abre um monte deles.”
Com várias premiações em olimpíadas de matemática, alunos e ex-alunos da E.M. Francis Hime falam dos seus sonhos
Só mesmo sendo muito fera nos números para listar os prêmios
que Marlon Benjamin, Lucas Resende, Bruna Ladislau, Gabriel Ladislau e Rebeca Vitelbo Herdy Martins já conseguiram em olimpíadas de matemática. O que os une, além da paixão pela matemática, é o fator incentivo em sala de aula: todos foram alunos de Luiz Felipe Lins, da E.M. Francis Hime.
“Eu não conhecia matemática. Achava que era somar, dividir, multiplicar e subtrair. Quando percebi que era um desafio, adorei”, conta Marlon, quatro vezes medalhista na OBMEP, outras quatro na OMERJ, duas no Canguru, duas na Sul-Americana…
“Eu tinha certa facilidade, mas nunca tinha percebido o quanto a matemática era interessante. Minha vida mudou”, complementa Lucas, quatro vezes medalhista da OBMEP.
O desempenho de Marlon nas competições de matemática lhe garantiu uma bolsa de estudos em um colégio particular. Atualmente, ele cursa o 1º ano do curso de engenharia no Instituto Militar de Engenharia (IME). Lucas, que fez o Ensino Médio no Cefet, está na graduação em matemática na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2013, suas notas do Enem lhe garantiriam uma vaga em matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): foi o 18º colocado.
“Meu irmão mais velho vive me perguntando qual é o meu problema para gostar tanto de matemática. Só respondo que vou entrar na faculdade com muito mais facilidade do que ele”, brinca.
Na família Ladislau, Bruna, que cursa Farmácia na UFRJ, e Gabriel, aluno do Cefet, também se divertiam disputando quem é melhor em matemática.
“No Ensino Fundamental, tirar dez é fácil. Depois, acaba a moleza”, provoca Bruna.
“A matemática te ajuda em tudo. Você fica mais criativo para responder, aprende a raciocinar melhor. Tem gente que me chama de nerd, mas eu nem ligo. O estudo vai me abrir muitos caminhos”, disse Gabriel.
O que os meninos mais gostam é que os bons resultados nas olimpíadas são o passaporte para os programas de iniciação científica. E para o cobiçadíssimo Encontro do Hotel de Hilbert, quando os melhores alunos do país com melhor desempenho no Programa de Iniciação Científica Jr. (PIC), da OBMEP, se encontram para uma imersão na matéria.
Além disso, são as oportunidades para o futuro que enchem os olhos da garotada. Rebeca, que hoje faz economia na FGV, ganhou uma bolsa de estudos para o Ensino Médio em um colégio particular, e suas notas no Enem, no 2º ano, lhe asseguraram uma vaga em Ciências Atuariais na UFF, em 2º lugar. Em sua página no Facebook, a matemática serve de mote até para comentários bem-humorados. “Caros professores de matemática, X é sempre igual a 10. Atenciosamente, os romanos”, brincou ela em um post. “Na matemática, buscamos o caminho mais fácil para resolver um problema. E não é isso que precisamos fazer no dia a dia?”.
Resposta certa.