História inspiradora: Jean Carlos de Aguiar Lelis
A disputa de quem fazia contas de cabeça com mais rapidez, entre ele e o pai, foi o início de tudo. Jean Carlos de Aguiar Lelis começou ali, naquela brincadeira descompromissada, a descobrir um mundo que o encantou tanto que, hoje, passados 20 anos, é doutorando em Matemática pela Universidade de Brasília (UnB).
A vida de Jean assemelha-se à de milhões de brasileiros criados na pobreza. A diferença entre ele e a maioria é que a Matemática apareceu do nada e o ajudou a superar as vicissitudes. “Matemática sempre foi a disciplina preferida do meu pai. Como ele gostava de fazer contas de cabeça, isso se tornou algo nosso. Era tipo um jogo: quem fazia a conta primeiro?”, conta Jean.
O pai é o ex-pedreiro Cláudio Antônio Lelis. A mãe, Luciara Neves de Oliveira Lelis, por questão de saúde, parou de trabalhar como empregada doméstica. Cláudio e Luciara são tios-avós de Jean. Ele os chama de pais porque o criaram a partir dos 2 meses de vida. “Meus tios-avós já tinham duas filhas. Não podiam mais ter filhos, mas me criaram como se fosse um. A família nunca teve situação financeira muito boa. Minha mãe teve que parar de trabalhar por causa de um problema nos punhos. Meu pai sustentava ela e três filhos, não era fácil. Sempre trabalhou como autônomo, então, quando faltava serviço, passávamos momentos difíceis. Mas dávamos um jeito, nunca faltou o básico. Eles sempre fizeram de tudo para nos manter nos estudos. Mesmo depois que já não podia mais trabalhar como pedreiro, começou a vender alimentos”, relata Jean.
Jean fala que só ele gostava de Matemática nas aulas em Goiânia, onde nasceu e foi criado. Na sexta série, ouviu falar da Obmep. Vislumbrou na competição a chance de conhecer jovens que também apreciavam Matemática.
A partir da primeira Obmep, quando conquistou a medalha de prata, sua vida mudou. Disputou mais cinco Olimpíadas Brasileiras de Matemática das Escolas Públicas. Ao todo, ganhou uma medalha de ouro, uma de prata, duas de bronze e duas menções honrosas. A primeira disputa ainda está fresca em sua memória.
“Do meu nível, o 1, só eu e mais um aluno da escola nos classificamos. Do nível 2, só um. Nem tinha nível 3 no colégio. A segunda fase era longe, fui o único a ir. Meu pai já tinha trabalhado como pedreiro lá perto, me ensinou o caminho do ônibus. Fiz a prova, voltei para casa. Não tinha internet e fui até uma lanhouse entrar no site da Obmep. Demoraria muito para ter o resultado. Para alguém ansioso, dois meses é uma eternidade”, observa.
‘O dia que mudou a minha vida’
Um mês depois, Jean esquecera a Obmep. Até que o inesperado o visitou. “Não sei dizer quanto tempo levou até o dia que mudou a minha vida. No caminho para a sala de aula no colégio, muitos alunos me olhavam. Quando entrei, tinha um cartaz com meu nome. Eu tinha ganhado a medalha de prata da Obmep! Nunca esperava por aquilo. Vi aquela lista no site tantas vezes até acreditar. Tudo mudou.”
No ano seguinte, Jean começou o primeiro PIC. “Enfim, tinha outros apaixonados por Matemática perto. Nossos sábados na Universidade Federal de Goiás eram incríveis. Tudo era novo pra mim, sabia que não conseguiria mais viver sem aquilo.”
Jean esteve em cinco PICs. Ele sempre estudou na rede pública, em meio às dificuldades. “Ia me virando com o que tinha. Sempre morei longe, tinha de pegar ônibus. Com o PIC, as coisas melhoraram. Ganhava R$ 100 por mês. Parece pouco, mas bastava para todos os meus gastos do mês. Com isso, comprava material, pagava transporte. Sempre que dava fazia algo para ganhar um extra: aulas particulares, trabalhos escolares para outros alunos, às vezes ajudava meus pais com as vendas. Com isso, deu para levar.”
O Picme veio em seguida. “A grande porta que o Picme me abriu foi a possibilidade de me tornar doutor em Matemática. Logo que entrei na faculdade comecei a ser orientado a seguir com mestrado e doutorado. Como tinha o auxílio financeiro, dediquei-me totalmente. Mas o Picme fez mais ainda, ao abrir a possibilidade de cursar o mestrado junto com a graduação. Isso foi incrível, e um pouco difícil também, mas aceitei o desafio. Em quatro anos, fiz graduação e mestrado. Graças a isso, hoje, aos 25 anos, estou no terceiro ano do doutorado.”
Jean elogia os programas de iniciação científica. “O PIC e o Picme foram o maior e melhor prêmio que se poderia dar a um medalhista de uma olimpíada de escolas publicas. Primeiramente, pelo apoio financeiro, que me ajudou muito a focar nos estudos. Além disso, me possibilitou uma interação com excelentes professores, que moldaram muito a minha
forma de pensar.”
Em breve, pretende lecionar em uma universidade publica, para continuar estudando e ensinando Matemática. “Quero seguir a carreira acadêmica. Meus ídolos, desde a adolescência, estão no meio. Graças à Obmep, conheci o último Teorema de Fermat, provado no fim do século passado pelo grande Andrew Wiles, além dos feitos de matemáticos brasileiros, como Carlos Gustavo Moreira [Gugu] e Artur Avila [medalha Fields] – ambos pesquisadores do Impa. Serei apenas uma gota nesse oceano que é a Matemática, mas me alegra pensar que vou compartilhar do mesmo oceano que essas pessoas.”
Claudyane Lelis Santos tem do irmão a imagem do menino fascinado por números, estudioso ao extremo. “A única vez que me lembro do Jean não querer ficar na aula foi em seu primeiro dia na pré-escola”, fala, divertida. Segundo ela, Jean “sempre quis saber e entender mais do que aquilo que lhe era apresentado” na aula. “Ótimo aluno, de excelentes notas. As melhores sempre em Matemática e nas matérias que envolviam números.” A passagem dos anos, acrescenta, não diminuiu o interesse de Jean pela Matemática. Muito pelo contrário, diz. “A Obmep selou de vez a paixão dele pelos números. Ele não poderia ir por outro caminho.”
A matemática Anna Carolina Fernandes da Silva conviveu com Jean na UnB. Ela narra o impacto que a chegada dele causou: “Eu o conheci no meu terceiro ano de graduação. O assunto do instituto era o calouro que estava ‘mitando’. Jean surgiu tão preparado e apaixonado pela Matemática que chegou fazendo disciplinas do quinto período”.
Carolina rememora o período em que Jean foi monitor do Picme. “Era muito bonito o modo como ele se via naqueles meninos, como tinha vontade de devolver o que recebeu. Ele tem um amor indiscutível pela Matemática, é de arrepiar quando fala de seus sonhos e de como poderia ter sido a vida dele sem ela. Sem dúvida, Jean encontrou seu lugar. Ele ama o que faz e faz o que ama. Sei que ainda ouvirei muitas histórias com o nome dele.”
*Texto retirado do livro de Histórias Inspiradoras da OBMEP.