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10/07/2017

Arthur Dapieve está à espera do estalo matemático

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*Reprodução do Jornal O Globo

A grande façanha matemática da minha vida foi ser pego com cola numa prova de trigonometria. Incapaz de memorizar aquelas fórmulas, eu as tinha miniaturizado. Escondi o papelote sob a coxa. Veio o flagra. Minha prova foi recolhida. Levei zero. Vergonha. Precisei de aulas particulares para garantir a aprovação no final do ano.

Paradoxalmente, a própria fiscal da prova pode ter tido uma involuntária parcela de culpa na minha inépcia matemática. Dona Sônia era professora de português. Foi quem pediu que lêssemos “O forte”, de Adonias Filho, o primeiro livro da escola que me entusiasmou. Antes de eu perceber que Machado de Assis não era coisa de criança.

Se assim foi, a dona Sônia, que de vez em quando ainda encontro no Municipal, divide a culpa com minhas outras professores de português no Colégio Mallet Soares, onde estudei praticamente a vida inteira. Chamavam-se Zulma, Maria Couto, Thalita. Sem falar nas “tias” multidisciplinares que as precederam. Irenice, Regina, Alice. De uma forma ou de outra, elas me estimularam mais o gosto pela leitura — e pela escrita — do que pelas contas. Não me lembro do nome de todos os professores de matemática.

Se quem não sabe ler e escrever é chamado de analfabeto, quem não consegue ir muito além do 7 x 8 = 56, é o quê? Sou eu. Abro a calculadora do celular logo que a conta a ser dividida pousa na mesa do botequim. Desconfio até da minha capacidade de digitar os números certos e repito a operação para não deixar ninguém no prejuízo.

No entanto, a minha estupidez não advém de nenhuma repulsa pela matemática ou ojeriza pelos que a dominam. Muito pelo contrário. Por ela, tenho profundo fascínio e, por eles, grande admiração. Aliás, tenho é inveja do meu amigo Alex Bellos, ex-correspondente do jornal inglês “Guardian” no Rio. Além de escrever muitíssimo bem, inclusive sobre futebol, ele é craque nas contas. Formou-se em matemática e filosofia.

À espera do estalo que nunca vem, povoo uma prateleira com livros como “Alex no país dos números — Uma viagem ao mundo maravilhoso da matemática”, do Bellos, e “Os maiores problemas matemáticos de todos os tempos”, de Ian Stewart. Nele, vejo nomes como Goldbach, Kepler, Mordell, Fermat, Riemann, Navier-Stokes. E babo.

Não, não sou um tapado completo. Por conta própria, li — e entendi — um bocado de filosofia quando era adolescente. O que me exaspera ainda mais quando percebo o ponto de interseção entre a filosofia e a matemática. É como se esta fosse uma seita esotérica para a qual não me credenciei a tempo. Sei, também, que compreenderia melhor certos aspectos da teoria musical se tivesse algum talento com os números.

Leio, na revista “piauí” de junho, o obituário escrito pelo repórter Bernardo Esteves para um professor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o alagoano Elon Lages Lima, falecido aos 87 anos. O título é “Mestre de mestres”. Leio com respeito similar ao com que antes lera os perfis do brasileiro Artur Avila — ex-mestrando do próprio Lima, futuro Medalha Fields, texto de João Moreira Salles na mesma “piauí”, em 2010 — e do chinês Yitang Zhang, na “New Yorker”, há dois anos.

O título do texto de Alec Wilkinson na revista americana era “A perseguição à beleza”. Também poderia servir a um perfil do compositor Nico Muhly, por exemplo. Aqui, Bernardo Esteves escreveu: “Mais de um pesquisador com quem conversei recorreu ao adjetivo ‘bonito’ para caracterizar o segundo resultado de Lima (provando um teorema formulado por John Milnor) — talvez se trate do elogio maior que um matemático pode almejar. Já para o alagoano, a beleza de um resultado matemático era comparável à de um soneto, ‘como se fosse uma explosão de pureza inesperada, de elegância’, conforme disse num depoimento à documentarista María Campaña Ramia”.

Leio isso e penso em Paulinho da Viola. Posso não entender o bastante de matemática, mas compreendo que ela pode ser pura, bela, elegante, emocionante. A gente associa essas palavras às artes ou, no máximo, às chamadas ciências humanas e sociais. A gente meio que nega seu uso às ciências exatas, o que constitui uma injustiça ululante. Talvez seja até uma vingança mesquinha da nossa maioria “analfanumérica” contra a minoria boa no pensamento abstrato e na sua eventual aplicação prática.

O obituário do professor Elon Lages Lima também merece atenção porque é o perfil de um grande professor, lembrado com admiração e carinho por todos com quem conviveu em décadas de trabalho. Não costumamos valorizá-los o bastante. Segundo Esteves, Lima era um sujeito que dizia ter renunciado à pesquisa “porque se sentia acima de tudo um professor”. Escreveu 41 livros, voltados para alunos dos mais variados níveis, muitos transformados, eles mesmos, em professores e autores.

Acho que preciso acrescentar ao menos um dos livros do professor Lima à prateleira que aguarda, pacientemente, o meu estalo matemático.

*Reprodução do Jornal O Globo

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