Navegar

11/12/2017

Talento de povoado em PE alça voos cada vez mais altos

Karine Rodrigues

A distância entre dois pontos é um cálculo que o pernambucano Júlio César Coelho de Amorim, de 14 anos, tem feito com muita frequência desde que passou a se dedicar à Matemática. Não por se tratar do exercício preferido, mas pela curiosidade em descobrir quão longe ela ainda pode levá-lo.

Acostumado a percorrer 11 km de estrada diariamente até a escola, o adolescente morador de Simpatia – povoado com 500 habitantes na zona rural de Petrolina (PE) – decidiu fazer um trajeto quase dez vezes maior para participar de um curso de aprofundamento na disciplina.

Leia também: Clarice Lispector e Leopoldo Nachbin: “os impossíveis”
Estadão: ‘Machine learning chega às finanças’ 
Matemático critica modelo de sorteio da Fifa, na Folha

Tudo começou em 2014, quando ele e três colegas da Escola Engenheiro Alfredo Amorim Coelho participaram na Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) de Juazeiro (BA) de uma competição municipal com desafios do Banco de Questões da OBMEP.

Na Univasf, os estudantes souberam que no campus do outro lado do Rio São Francisco, em Petrolina, havia um projeto preparatório para a olimpíada nacional. Batizado de “Descobrindo talentos em Matemática”, o programa era dirigido por Severino Cirino, um dos coordenadores da OBMEP em Pernambuco. O grupo se empolgou.

“Ficamos muito interessados, mas morávamos a quase 100 km de distância. Como estávamos obcecados por aquela Matemática, reunimos 13 alunos e fretamos uma van. Era caro, R$ 30 por semana para cada”, conta Júlio César, agora aluno da Escola Municipal João Rodrigues de Macedo, em Cristália, também na zona rural de Petrolina.

Até hoje, Júlio participa do projeto, em parceria com o Núcleo de Pesquisa e Ensino em Matemática da Univasf. Em sua sexta edição, a iniciativa atende 376 estudantes de 40 escolas públicas e seis particulares em Petrolina, Juazeiro e cidades vizinhas. Eles têm aulas com professores universitários e das redes municipal e estadual, que usam uma metodologia de ação e reação.

Após o projeto, regional conquistou 108 medalhas

“A ideia central é aproveitar a reação do estudante quando lhe é proposto um problema. O professor age como mediador. É a partir da reação que se constrói a relação ensino-aprendizado”, diz Severino, mentor e coordenador do projeto de extensão da Univasf e de uma regional da OBMEP. Ele bolou a iniciativa logo após assumir a coordenação regional e constatar o baixo desempenho das escolas na olimpíada.

Na OBMEP2016, junto com medalhistas de Pernambuco, Júlio César comemora abraçado a Severino Cirino

Na época, 2011, a regional ganhara três medalhas e 100 menções honrosas. Desde a criação do projeto, no ano seguinte, o número de conquistas aumenta. Totaliza até agora 108 medalhas (10 ouros, 27 pratas e 71 bronzes) e 1.210 menções honrosas. Na edição de 2017, foram 23 medalhas e 199 menções. O número de inscrições para o processo seletivo saltou de cerca de 20 para 1.100 em 2017. “Os resultados nos estimulam a dar continuidade ao projeto”, afirma Cirino.

Escola multisseriada

Por causa do “Descobrindo talentos em Matemática”, a rotina de Júlio César aos sábados é sagrada: levanta antes de clarear e, às 5h30, segue na van para Petrolina. Das 8h30 às 11h30, concentra-se nas aulas. Depois, pega a condução para, em 3 horas, voltar a Simpatia, onde mora com o pai, Joseli, mecânico; a mãe, Hermenegilda, diretora pedagógica e sua primeira professora; e o irmão mais novo, José Augusto, de 10 anos.

Até o 5º ano, ele estudava em uma turma multisseriada (com alunos de idades e anos diferentes) na Escola Municipal Tenente Jessé, em Hilário Rodrigues da Costa, também na zona rural, onde Hermenegilda trabalha.

Em 2014, a escola chamou a atenção ao conquistar o terceiro lugar na Copa de Resolução de Problemas, em disputa com outras 33. “Foi uma surpresa porque é um distrito da zona rural”, disse o coordenador, referindo-se às limitações de infraestrutura da região.

Pouco depois de ingressar no projeto, Júlio César ganharia a primeira medalha na OBMEP, em 2015. “Corri atrás do ouro. Como não tinha internet em casa, ia à escola no contraturno e baixava o máximo de material possível para estudar. Com muito esforço e apoio da família, consegui”, relata.

Rio e Canadá

Seus novos cálculos de distância o fizeram percorrer um longo e prazeroso trajeto até a premiação no Rio. “Antes, era só um menino com facilidade em Matemática. Agora vejo a minha vida transformada pela OBMEP. Passei a ver as oportunidades. Descobri que a Matemática pode ser um ganha-pão.”

 

 

Júlio César com os pais e o irmão

Cirino lembra que, no ano passado, a Matemática levou o estudante a um local ainda mais distante. Com mais 19 alunos e dois professores da rede pública de Petrolina, participou de curso de 15 dias na Universidade de Toronto (Canadá), após se destacar entre os primeiros colocados de um processo seletivo.

“A viagem abriu minha mente para ver como é o mundo lá fora. Desejo sair de Simpatia, onde praticamente não há opções de lazer e oportunidades. Penso em fazer Engenharia Elétrica ou Mecânica e, depois, tentar pós-graduação em Matemática. Depende do que o futuro reservar para mim.”

Não importa quão longe seja, Júlio César já mostrou que, pela Matemática, ele vai atrás. Para 2018, nem precisa fazer cálculo de distância. Já sabe que de Simpatia até o Rio são 2.000 km. Pode ser que refaça o trajeto para receber o seu terceiro ouro, conquistado na OBMEP 2017.

Leia ainda: Matemática dos cassinos resolve muitos problemas práticos
A matemática inspiradora de Maryam Mirzakhani