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22/01/2019

Por que a descoberta do maior número primo importa?

Reprodução da matéria da revista Exame

Quem prestou atenção nas aulas de matemática na escola deve se lembrar dos números primos. São aqueles divisíveis apenas por 1 e por eles mesmos, como 2, 3, 5, 11 e 20.477. O último desses cinco algarismos até parece grande, mas há um projeto de pesquisa global dedicado a descobrir valores desse tipo cada vez maiores. E os participantes desse projeto conseguiram, no final de 2018, encontrar o novo maior número primo da história.

O chamado M82589933 tem 24.862.048 de dígitos, 1,5 milhão a mais do que o recordista anterior, e é expresso simplesmente como 2^82,589,933-1 (ou 2 multiplicado por si mesmo 82.589.933 de vezes, menos 1). Um ZIP (link) com o algarismo inteiro foi disponibilizado pelo Great Internet Mersenne Prime Search (GIMPS), se estiver curioso.

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O novo maior número primo da história é o 51º primo de Mersenne descoberto até agora. Esses algarismos levam o nome graças ao padre francês Marin Mersenne, um pioneiro na área que viveu entre 1588 e 1648. Ele é também a inspiração para o GIMPS mencionado acima, um projeto de pesquisa colaborativo criado em 1996 dedicado aos primos.

O grupo disponibiliza um software gratuito que, em resumo, faz contas para chegar a novos números primos gigantes. Voluntários podem baixá-lo e emprestar o poder de processamento de seus PCs para ajudar a agilizar o processo de descoberta. O M82589933 foi inclusive encontrado por um profissional de TI na Flórida que é voluntário há apenas quatro meses.

Depois de descoberto, ainda no começo de dezembro, o número foi verificado por outros membros do projeto no decorrer das duas semanas seguintes. Cálculos foram refeitos em três sistemas diferentes, até sair a comprovação: os matemáticos tinham realmente mais um número primo para chamar de “seu”. Mas por que isso importa?

Para que pesquisar números primos?

“Essa é uma pergunta que aparece muito na matemática pura”, disse a EXAME Augusto Teixeira, pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). “Existem muitas áreas cujas descobertas às vezes não têm uma aplicação imediata, mas que continuam na ativa na esperança de que tudo se torne útil um dia.” Foi assim que começou com esses algarismos quando as pesquisas em torno deles foram iniciadas.

Até que veio a criptografia e os números primos encontraram um “lar”. Hoje, eles são aplicados diretamente nessa área, que é outra que parece distante, mas da qual dependem muitos processos que você certamente faz no dia a dia. Pagar uma conta na internet, por exemplo, não seria possível sem uma solução que protegesse as informações sensíveis — e por, consequência, sem esses algarismos tão peculiares.

Os números primos são a base do sistema de criptografia RSA, um dos mais importantes da história. Desenvolvido em 1978 pelo matemático Ron Rivest, o criptógrafo Adi Shamir e o cientista da computação Leonard Adleman, ele foi criado para proteger a transmissão de informações online.

O sistema usa uma combinação de duas chaves, uma pública e outra privada. Em resumo, a primeira, que pode ser divulgada à vontade, é usada para cifrar as informações, enquanto a segunda, sempre mantida em segredo, serve para decifrá-las.

Há toda uma série de operações matemáticas por trás da criação das duas chaves, mas, basicamente, a chave pública é o resultado da multiplicação de dois números primos enormes. Não estamos falando de milhões de dígitos, no entanto — 100, 200 ou 300 bastam. Mas para quebrar a proteção criada por essa chave, é preciso descobrir quais são os dois números originais. E é aí que mora a “magia” desses algarismos.

“Mágica” criptográfica

“Fazendo uma analogia, multiplicar dois números primos enormes é como quebrar um vaso”, explicou o pesquisador Teixeira, do IMPA. É fácil de fazer, mas quase impossível de voltar atrás — quem já tentou juntar os cacos de uma porcelana quebrada vai entender bem. “Existem poucos métodos bons para desfazer a conta, e mesmo os melhores podem levar séculos para conseguir descobrir a senha do banco de uma pessoa.”

Isso tem a ver com o teorema fundamental da matemática, que diz que qualquer algarismo inteiro é o produto da multiplicação de números primos. O site ExtremeTech cita dois bons exemplos em um artigo:

  • 222 = 2 x 3 x 37
  • 228.940 = 2 x 2 x 5 x 23 x 79 x 3391

Há métodos para fazer essas fatorações e descobrir os números primos por trás deles, mas eles não são bons quando os algarismos são gigantescos. O mesmo artigo do ExtremeTech diz que, com o mesmo método usado para “quebrar” um algarismo de sete dígitos, até mesmo um supercomputador pode levar séculos para fatorar outro de 500 dígitos. Por isso a criptografia baseada nisso é eficaz.

Mas não quer dizer que a segurança seja impenetrável. Pesquisadores conseguiram desmontar um número de 232 dígitos (768 bits) em um desafio da RSA usando uma rede de computadores, em 2010. Foi suficiente para que a empresa deixasse de lado as chaves daquele tamanho. Hoje, ela dá prioridade a algarismos maiores, de 1024 bits, 2048 bits e 4096 bits, sempre com mais de 309 dígitos.

Futuro nebuloso

A evolução do poder de processamento dos computadores pode fazer com que, no futuro (ainda que distante), mesmo as chaves maiores possam ser quebradas. O principal risco mora nos computadores quânticos, que ainda estão engatinhando, mas que prometem uma revolução na computação.

Há quem diga que adotar algarismos cada vez maiores para gerar chaves virtuais possa manter a criptografia baseada em números primos útil. Eventualmente, ainda que em um futuro muito distante, isso pode dar uma aplicação prática ao 51º primo de Marsenne descoberto agora e também aos recordistas anteriores.

Mas Teixeira, o pesquisador do IMPA, acredita que a computação quântica um dia seja capaz de fatorar mesmo os maiores números primos com facilidade. Não quer dizer que ficaremos inseguros: há outros métodos eficazes para proteger informações, como a criptografia por curvas elípticas já usada atualmente. Só que isso pode comprometer a aplicação dos algarismos primos na segurança, o que levaria às pesquisas acerca deles novamente a um período de “hibernação”. Mas só até encontrarmos outro uso para eles.

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