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07/05/2018

Artigo debate formação de professores de matemática

Crédito: Rick Collins / UFV

O distanciamento entre a formação universitária de professores de matemática e prática de sala de aula da escola básica não é novidade. É observado há, pelo menos, um século, como aponta o alemão Felix Klein em seu livro “Matemática elementar de um ponto de vista superior”, de 1908. No artigo abaixo, intitulado “Formação de professores de matemática: para uma abordagem problematizada” e publicado na revista “Ciência & Cultura”, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Victor Giraldo, observa que parte considerável dos problemas observados no ensino e aprendizagem da matemática são, em grande medida, explicados pelas diversas dicotomias que cercam o debate. Confira, abaixo, o texto na íntegra.

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Formação de professores de matemática: para uma abordagem problematizada

Introdução: a ruptura entre universidade e escola na formação de professores de matemática

Há mais um século, o matemático alemão Felix Klein denunciava, em sua célebre obra Matemática elementar de um ponto de vista superior [2] (editada pela primeira vez em 1908), uma alienação entre a formação universitária de professores de matemática e a prática de sala de aula da escola básica. O autor identifica essa ruptura como uma dupla descontinuidade: por um lado, quando os estudantes ingressam nos cursos universitários de formação de professores, poucas relações são estabelecidas entre a matemática com que passam a ter contato e aquela anteriormente aprendida por eles como alunos da escola básica; e por outro lado, quando concluem esses cursos e iniciam a vida profissional, poucas relações são estabelecidas entre a matemática aprendida durante a graduação e aquela que passa a ser demandada pela prática de sala de aula da escola básica. Assim, é como se, ao ingressar na universidade, o futuro professor devesse “esquecer” toda a matemática que aprendeu até então na escola básica; e ao terminar a graduação, o professor devesse novamente “esquecer” toda a matemática ali aprendida para se iniciar na carreira docente. Em consequência, o curso universitário pode ter um efeito essencialmente inócuo na formação do professor.

A ruptura denunciada por Klein não é particular de seu tempo ou de seu contexto social, e tem paralelos com resultados de pesquisas mais recentes em educação matemática. Por exemplo, a pesquisadora estadunidense Deborah Ball, em sua tese de doutorado [3], identifica e desafia três suposições que, segundo a autora, permeavam tacitamente as concepções dos cursos universitários de formação de professores de matemática nos EUA à época: (i) os tópicos da matemática escolar são simples e comumente entendidos; (ii) portanto, esses tópicos não precisam ser reaprendidos pelos futuros professores na universidade; (iii) o conhecimento de matemática de nível universitário será suficiente para equipar os futuros professores com um entendimento amplo e profundo da matemática escolar, suficiente para o ensino da disciplina na educação básica.

Nesse estudo, Ball propôs problemas típicos da matemática escolar a um grupo de estudantes universitários que estavam se preparando para se tornar professores da educação básica. Por exemplo, foi pedido aos estudantes que formulassem um contexto para o ensino de uma divisão por ½ (isto é, para abordar a divisão por frações). Apenas 5 dentre 28 participantes do estudo forneceram respostas consideradas apropriadas. Os demais estudantes apresentaram respostas incorretas (em geral, confundindo divisão por ½ com divisão por 2), ou foram incapazes de responder – mesmo aqueles com desempenho avaliado como acima da média nas disciplinas de matemática universitária. Esses resultados põem diretamente em cheque as suposições apontadas pela autora.

No Brasil, segundo o diagnóstico de Moreira [4], ainda que o chamado modelo “3+1” (três anos de disciplinas de “conteúdo”, seguidos de um ano de disciplinas de “pedagogia”) tenha sido abandonado na maior parte dos cursos de licenciatura em matemática, seu princípio basilar permanece presente. Esses cursos continuam se estruturando por meio da justaposição de módulos sobre o “conteúdo matemático” e módulos sobre “pedagogia” que, apesar de em geral não serem mais separados em anos letivos diferentes, ainda são projetados e executados sem articulação.

O fato de questões semelhantes – que revelam cenários de ruptura entre as formas como professores de matemática têm sido formados e a formação efetivamente necessária para o ensino da disciplina na escola básica – emergirem em contextos culturais e em tempos diferentes indica a complexidade do tema. Embora a ideia de que “para ser um bom professor de matemática basta saber muita matemática” seja um senso comum recorrente (e até mesmo determine algumas políticas de formação de professores), a pesquisa em educação matemática e, sobretudo, os resultados da aprendizagem de matemática na educação básica brasileira demonstram que não é “tão simples assim”. Como observam Moreira e Ferreira [5], frequentemente se defende uma formação sólida em matemática para o futuro professor, sem que se explicite o que efetivamente constituiria essa tal solidez ou se discuta seu impacto efetivo na prática profissional docente.

De fato, é surpreendente que uma questão ao mesmo tempo tão complexa e tão decisiva para a sociedade seja debatida e decidida com base em argumentos com fundamentos tão frágeis, tais como as “convicções” ou experiências pessoais daqueles que atuam em formação de professores. Neste sentido, Tardif, Lessard e Lahaye [6] expressam uma contradição inerente ao lugar social da educação ao observarem que professores “ocupam uma posição estratégica no interior das relações complexas que unem as sociedades contemporâneas aos saberes que elas produzem e mobilizam com diversos fins” (p. 216); entretanto, “na medida que a produção de conhecimento tende a se impor como um fim em si mesmo e um imperativo social indiscutível, (…) as atividades de formação e de educação parecem passar, progressivamente, para o segundo plano” (p. 217).

A construção de currículos de cursos de licenciatura em matemática não pode deixar de levar em conta resultados de pesquisa, como os citados anteriormente – e envolve a reflexão sobre questões muito mais básicas, tais como para que escola se pretende formar professores, o que tem sido e o que pode ser essa escola. Ainda que essas questões possam parecer evidentes, envolvem concepções radicalmente diferentes, que podem implicar em formas radicalmente diferentes de formar professores. Nesse sentido, merece especial preocupação a ideia de que possivelmente venhamos (de maneira inadvertida ou não) formando professores com referência em uma escola anacrônica, ainda baseada em um paradigma de aquisição de conhecimentos prontos – uma escola que ignora inteiramente as transformações sociais, culturais e as formas de comunicação e de produção de conhecimento.

Neste artigo abordamos um pequeno recorte dessa discussão [7]. No debate sobre formação de professores que ensinam matemática, tanto no âmbito da pesquisa em educação matemática, como nos meios profissionais de professores da educação básica e de formadores de professores, faz-se presente com frequência uma polarização entre algumas dicotomias: matemática abstrata versus matemática contextualizada; matemática acadêmica versus matemática escolar; conhecimento de matemática “pura” versus conhecimento de matemática para o ensino. Parte considerável dos obstáculos observados no ensino e na aprendizagem são, em grande medida, explicados a partir de dicotomias como essas. Passamos a discutir brevemente alguns aspectos dessas dicotomias, à luz da pesquisa em educação e em educação matemática. Em seguida, procuramos demarcar outra dicotomia que, embora seja menos reconhecida, consideramos que possa ajudar a entender diversos obstáculos associados às formas como a matemática é ensinada hoje: exposição naturalizada da matemática versus exposição problematizada da matemática.

Matemática acadêmica versus matemática escolar

Em linhas gerais, a dicotomia entre a matemática acadêmica e a matemática escolar pressupõe concepções sobre academia e escola, seus papéis e funções sociais. Uma primeira visão – muito simplificada – seria a de que a academia é o lugar onde o conhecimento é produzido e de onde se deve, portanto, ditar o que é matemática e como esta deve ser ensinada na escola. E a escola, por sua vez, é um lugar onde a matemática, produzida na academia, é “simplificada” e “difundida”, por e para grupos que não interferem em sua produção.

Um aspecto (talvez menos difundido) do trabalho de Klein diz respeito ao papel da escola na produção do conhecimento matemático. Para o autor, esse papel é tão central quanto o da academia: cabe à escola estabelecer um terreno cultural que determinará caminhos segundo os quais novos conhecimentos serão produzidos. Isto é, em linhas gerais, as formas como a matemática é ensinada na escola não apenas são influenciadas por, como também influenciam as formas como a matemática se desenvolverá como ciência. Além disso, Klein se refere ao estabelecimento de uma hierarquia entre a matemática elementar [8] e a matemática avançada como um obstáculo a ser vencido.

Nas últimas décadas, a literatura de pesquisa em educação e em educação matemática tem discutido largamente os diversos fatores que incidem nas formas como o conhecimento é mobilizado e ressignificado a partir das práticas escolares. Por exemplo, Yves Chevallard [9] examina a passagem entre os chamados “saber científico” e “saber ensinado”, a que se refere como transposição didática:

um conteúdo de saber que é designado como saber a ensinar sofre, a partir de então, um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O “trabalho” que transforma um saber a ensinar em um objeto de ensino é denominado transposição didática (p. 45, grifos no original).

Para o autor o saber ensinado pode desgastar-se com o tempo, tanto no sentido de afastar-se das normas do saber científico como de aproximar-se “perigosamente” do saber banalizado (isto é, do senso comum).

Por outro lado, André Chervel [10] critica duramente a visão de que as disciplinas escolares sejam meras vulgarizações das respectivas ciências de referência, e de que o papel da pedagogia seja simplesmente o de suavizar esse processo de vulgarização. Para o autor, as disciplinas escolares são:

entidades sui generis, (…), independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer, à sua própria história (p. 180).

Para Chervel, a pedagogia é parte constituinte do próprio conteúdo das disciplinas escolares, considerando a independência das mesmas. Em sua análise, o autor usa como referência o caso da teoria gramatical ensinada na escola francesa, que “foi historicamente criada pela própria escola, na escola e para a escola” [10] (p. 181).

Interpretações dos trabalhos desses autores têm levado a críticas com respeito ao estabelecimento da matemática acadêmica como saber de referência único, ao qual a matemática escolar deve estar subordinada; ou, num extremo oposto, da desconsideração completa das relações entre matemática acadêmica e escolar. Além disso, diversos pesquisadores têm criticado as formas como as concepções sobre matemática acadêmica têm se refletido nos modelos de formação de professores de matemática no Brasil. Por exemplo, Moreira e David [11] criticam a ideia dominante de que, “fora da organização lógico-formal-dedutiva, o conhecimento matemático torna-se um amontoado de fatos dispersos, sem conexões e, portanto, sem o formato de uma teoria” (p. 59). Esses autores prosseguem observando que, segundo essa concepção, os valores conceituais e estéticos da matemática científica seriam suficientes para garantir um estatuto teórico-científico à formação fornecida nos cursos de licenciatura em matemática.

Em nossa própria interpretação, essas críticas revelam um desafio em desenhar programas de formação inicial de professores de matemática que não se divorciem da matemática acadêmica, mas ao mesmo tempo que não estabeleçam com esta uma relação de subordinação. Por “relação de subordinação” nos referimos a concepções de formação de professores que mantenham um compromisso com os valores e critérios formais da matemática acadêmica, a ponto de deixar de reconhecer as múltiplas formas por meio das quais conhecimentos matemáticos são mobilizados e produzidos no contexto escolar, assim, desqualificando a escola como um lugar de produção de saberes. Entendemos que a superação da ruptura entre escola e universidade tem sido interpretada (a nosso ver, equivocadamente) como o estabelecimento de tais relações de subordinação.

Conhecimento de matemática “pura” versus conhecimento de matemática para ensinar

Uma das referências centrais para a pesquisa em formação de professores tem sido o trabalho de Lee Shulman. Esse autor identifica a desconsideração do conhecimento sobre o conteúdo para a avaliação das habilidades para o ensino como um paradigma perdido [12]. Com base nessa crítica, o autor propõe a noção de conhecimento pedagógico de conteúdo, como o conhecimento sobre os aspectos do conteúdo que o fazem compreensível a outros – um amálgama especial entre conteúdo e pedagogia [12, 13] que pode ser descrito como um conhecimento sobre o conteúdo para o ensino.

O trabalho de Shulman tem sido apropriado de diversas formas na pesquisa em educação matemática [14]. Algumas dessas apropriações têm gerado críticas, especialmente com respeito ao estabelecimento de estruturas de categorias fixas de conhecimento, que visariam prescrever o que o professor deve ou não saber e que, além disso, considerariam os saberes de conteúdo para o ensino apenas da perspectiva do próprio conteúdo, que seria assumido como dado, independente de contextos sociais (em particular escolares) em que é produzido e mobilizado.

Em nossa própria interpretação, uma contribuição importante do trabalho de Shulman está no reconhecimento da existência de saberes próprios da prática de ensinar matemática na escola básica, que são complexos e diversificados – e, sobretudo, que não podem ser reduzidos ao conhecimento de conteúdo per se. Assim, a relevância da proposição da noção de conhecimento pedagógico de conteúdo não está no estabelecimento de uma categoria prescritiva e fixa de saberes que o professor deve adquirir, e sim na possibilidade de argumentar sobre o conteúdo, situado em um contexto educacional, da perspectiva do ensino, considerando os objetivos inscritos a esse contexto.

Por exemplo, consideremos os dois tipos de algoritmos para a operação de divisão com números naturais (ilustrados na Figura 1, a seguir): as chamadas divisão por ordens e divisão por estimativas [15].

 

Na estrutura do algoritmo de divisão por ordens (usualmente empregado na escola básica), a operação é efetuada em passos determinados pelas ordens decimais do dividendo. Na estrutura do algoritmo da divisão por estimativas, a operação é efetuada por meio de decomposições do dividendo dadas por estimativas sucessivas para o quociente. Se argumentamos sobre que algoritmo é “melhor” da perspectiva do conhecimento de conteúdo per se, possivelmente, o mais relevante será o fato de que algoritmo por ordens é o “ótimo”, no sentido em que conduz ao resultado em um número mínimo de passos. Entretanto, se essa argumentação se dá sob a perspectiva do conhecimento de conteúdo para o ensino, deve-se levar em conta o fato de que o algoritmo por estimativas pode evidenciar estruturas matemáticas que são importantes para a aprendizagem, mas que podem ficar ocultas na forma de registro do algoritmo por ordens.

Tardif [16] destaca a importância da natureza dos saberes próprios do fazer docente, que caracterizam os professores profissionalmente e os distinguem de outras profissões e ocupações. Para o autor, o professor deve saber mais do que sua matéria, sua disciplina e seu programa, mas também possuir saberes pedagógicos, e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. Tardif destaca os “saberes que brotam da experiência e são por ela validados. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de ‘habitus’ e de habilidades, de saber fazer e de saber ser”.

O trabalho de Tardif constitui uma contribuição importante no reconhecimento do ser professor como uma profissão, com uma epistemologia própria. Embora esse fato possa parecer evidente, seu reconhecimento tem um papel político fundamental, uma vez que a atividade de professor é frequentemente desqualificada como uma profissão, e vista, ao contrário, como uma “vocação” ou um “sacerdócio” – que pode exigir “dedicação” ou inspirar “admiração”, mas não tem o mesmo estatuto social de outras profissões – ou mesmo como “algo que qualquer um pode fazer”. Esse reconhecimento tem ainda implicações importantes nos programas de formação de professores, que devem ser orientadas pelas práticas e saberes próprios da atividade de ser professor na escola básica, entendida como uma profissão. Neste sentido, Nóvoa [17] defende uma formação de professores construída dentro da própria profissão.

Noddings [18] destaca que a expressão conhecimento pedagógico de conteúdo, cunhada por Shulman, é mais um grito de guerra político do que um rótulo para um corpo de conhecimento. A autora destaca que a especificidade do conhecimento de matemática do professor tem implicações na sua prática e também na sua formação. Davis e Simmt [19] denunciam que o conhecimento matemático que emerge da experiência da prática de professores pode nunca ser considerado como um aspecto explícito da sua formação e nem mesmo ser reconhecido como parte do seu corpo disciplinar formal de conhecimento. Os autores afirmam, ainda, que os saberes de conteúdo matemático necessários para o ensino “não é uma versão diluída da matemática formal”. Neste sentido, como já observamos:

Alguns currículos de cursos de licenciatura são concebidos (…) tendo como referência principal os currículos dos cursos de bacharelado correspondentes, dos quais são excluídos os tópicos considerados “difíceis” ou “desnecessários” para o professor. Assim, a licenciatura é concebida como um bacharelado mutilado. Essa é uma perspectiva negativa para a formação de professores, pois se sustenta em premissas apenas sobre aquilo que o professor não precisa saber, sem levar em consideração os saberes necessários para a prática. [15] (grifos no original).

Exposição naturalizada da matemática versus exposição problematizada da matemática

Nas seções anteriores deste texto, discutimos dicotomias presentes no debate sobre formação de professores de matemática: matemática acadêmica versus matemática escolar; conhecimento de matemática “pura” versusconhecimento de matemática para o ensino. Porém, consideramos que tanto a pesquisa como as ações de formações de professores têm mais a se beneficiar da exploração de articulações entre essas dimensões do que do estabelecimento de relações de oposição rígida entre elas (neste sentido o termo “versus” nos títulos das seções expressa mais uma provocação do que uma concordância).

Além disso, entendemos a escola como um lugar de produção de saberes, e não simplesmente de aquisição ou de transmissão de conhecimentos estabelecidos. Consideramos que tal entendimento tem implicações cruciais nos argumentos para (re)pensar as formas de exposição da matemática na escola; bem como no reconhecimento do ser professor como uma atividade profissional, que está associada a uma rede complexa de práticas e saberes específicos, isto é, que se estabelece a partir de uma epistemologia própria. De fato, se a função do professor fosse meramente a de transmitir ao aluno conhecimentos estabelecidos, sua própria formação poderia contemplar apenas um conjunto de regras e procedimentos gerais, isto é, poderia se reduzir à dimensão do “saber fazer”.

Levando essas reflexões em consideração, nos alinhamos com Davis e Simmt [19] na perspectiva de que o saber do professor de matemática deve contemplar, de forma indissociável, o saber sobre a matemática estabelecida e o saber sobre os processos sociais e históricos por meio dos quais a matemática é produzida. Para esses autores, os saberes de matemática para o ensino não são determinados por estruturas fixas prescritivas, e sim a partir da articulação entre categorias mais estáveis (conceitos matemáticos, currículo) e mais dinâmicas (coletividade da sala de aula, entendimento subjetivo) do conhecimento matemático, entendidas como indissociáveis.

Neste sentido, consideremos que merece atenção outra dicotomia, que necessariamente se estabelece em uma relação de oposição: exposição naturalizada da matemática versus exposição problematizada da matemática [20]. Entendemos por exposição naturalizada aquela que se baseia apenas na consideração da matemática estabelecida, como um corpo de conhecimento que sempre foi e sempre será da forma que é hoje, ou que evolui linearmente de um estado visto como “mais atrasado” para um estado “mais avançado”, por meio da inspiração isolada de “gênios com talento inato”. A exposição problematizada, em contrapartida, corresponde a uma concepção da matemática a partir de seus múltiplos processos sociais de produção – o que inclui tanto os processos históricos de produção de conhecimento, que levaram às formas como a matemática está estabelecida hoje, como os processos de produção e mobilização de saberes nos contextos sociais escolares. Nos termos de Davis e Simmt [19], uma formulação para essa dicotomia seria a de que a exposição naturalizada se sustenta exclusivamente em categorias estáveis do conhecimento, enquanto a exposição problematizada é construída a partir da articulação entre categorias estáveis e dinâmicas.

As práticas de ensino da matemática – tanto na escola como na universidade – têm sido largamente dominadas por paradigmas de exposição naturalizada. Sendo assim, o reconhecimento da dicotomia entre exposições naturalizada e problematizada da matemática pode contribuir com o entendimento de diversos obstáculos do ensino e da aprendizagem da disciplina, que são usualmente discutidos a partir de relações de oposição entre a matemática escolar e a matemática acadêmica. Isto é, em nossa interpretação, muitos desses obstáculos estão mais associados a um modelo de exposição da matemática que tem determinado seu ensino, tanto na escola como na universidade (embora se manifeste de formas diferentes em cada um desses contexto), do que a qualquer ruptura entre escola e universidade. De fato, na base de muitos obstáculos de ensino e de aprendizagem de matemática podem se encontrar vínculos entre concepções sobre a própria natureza da matemática e formas naturalizadas de exposição da disciplina, que se alimentam mutuamente, são tacitamente estabelecidas e amplamente disseminadas, tanto no ensino básico como no universitário:

 Como a matemática é vista como uma “ciência do rigor”, seu ensino deve ser “rigoroso”;

 Como a matemática é vista como ciência da “certeza”, não há espaço para o erro em seu ensino;

 Como o conhecimento matemático é “organizado em teoremas”, seu ensino deve privilegiar a apresentação de respostas;

 Como a matemática é produzida historicamente por “gênios”, seu entendimento só é acessível a pessoas com “talento inato”. Neste caso, o objetivo do ensino de matemática, seria, então identificar os estudantes “talentosos” e separá-los dos “fracos”.

Para ilustrar a discussão com um exemplo (muito simples), consideremos as estratégias para efetuar uma operação de multiplicação exibidas na Figura 2, a seguir. Algumas dessas estratégias podem revelar concepções potencialmente produtivas dos alunos, embora as respostas obtidas não correspondam necessariamente ao resultado da operação. Por exemplo, em algumas delas, as multiplicações parciais são resolvidas corretamente, embora os valores posicionais de seus resultados sejam desconsiderados. Entretanto, uma visão de que o objetivo do ensino de matemática é meramente separar os estudantes entre “talentosos” e “fracos” pode sustentar práticas em que o professor desconsidera inteiramente a produção do aluno. Essa visão pode levar o professor a desconsiderar até mesmo estratégias que são absolutamente corretas do ponto de vista matemático, mas que diferem dos algoritmos considerados como “padrões”.

 

Tais práticas privilegiam a repetição de procedimentos, em detrimento de habilidades como curiosidade e investigação – e podem levar a efeitos opostos aos objetivos da escola como um lugar de produção de saberes, mais afinados com uma escola anacrônica, orientada apenas para a aquisição de informações prontas.

Encontram-se também no ensino universitário práticas análogas a essas, no sentido da prevalência de exposições naturalizadas da matemática. Isso se verifica, por exemplo, em disciplinas iniciais de cálculo diferencial e integral, quando se opta por dar ênfase a procedimentos rotineiros que poderiam ser facilmente resolvidos por meio de métodos computacionais com recursos digitais, em lugar de explorar os fundamentos conceituais matemáticos desses métodos. Exposições naturalizadas verificam-se ainda quando a abordagem de disciplinas de matemática mais avançadas se reduz à apresentação de sequências de teoremas, sem que seus contextos matemáticos sejam discutidos, ou suas hipóteses sejam problematizadas. Tais práticas ignoram completamente as transformações recentes na sociedade e nas próprias formas de produção de conhecimento matemático científico, e apresentam a matemática essencialmente da mesma forma que ela era ensinada décadas atrás.

Parece haver ainda uma cultura de que a exposição da matemática de forma problematizada implicaria em um “enfraquecimento” do conteúdo, isto é, em um ensino “facilitado”. Tal cultura se sustenta na premissa que saberes matemáticos são produzidos de forma linear e não problemática – o que não é verdade nem mesmo para os processos históricos de produção de conhecimento matemático [22]. No caso dos cursos de licenciatura, essa cultura pode cristalizar nos futuros professores visões naturalizadas da matemática, além de concepções sobre como a matemática deve ser ensinada, que podem ter implicações no ensino da disciplina na escola básica. Sendo assim, é urgente repensar essas concepções, sob pena de se cristalizar um modelo anacrônico de ensino de matemática na escola e na universidade.

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Referências e notas

1. Este texto foi produzido no Laboratório de Práticas Matemáticas para o Ensino da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a contribuição de todos os seus membros.

2. A obra original de Klein, Elementarmathematik vom höheren Standpunkte aus, é organizada em 3 volumes, abordando: aritmética, álgebra e análise; geometria; precisão e aproximações. A primeira tradução dos volumes 1 e 2 para o português foi editada em 2009 pela Sociedade Brasileira de Matemática. A tradução mais recente para o inglês, incluindo os três volumes, foi publicada em 2016. Seguem as referências das obras nas traduções para o inglês e português, respectivamente: Klein, F. Elementary mathematics from a higher standpoint, volumes I, II, III. Traduzido por Schubring, G.; Menghini, M.; Baccaglini-Frank, A.. Berlin: Springer, 2016 (edição do original: 1908). Klein, F. Matemática elementar de um ponto de vista superior, volumes I, II. Lisboa: SPM, 2009 (edição do original: 1908). 3. Ball, D. L. “The subject matter preparation of prospective mathematics teachers: Challenging the myths”. National Center for Research on Teacher Education, Michigan State University, 1988.

4. Moreira, P .C. “3+1 e suas (In)variantes (reflexões sobre as possibilidades de uma nova estrutura curricular na licenciatura em matemática)”. Bolema, v. 26, n. 44, p. 1137-1150, 2012.

5. Moreira, P.; Ferreira, A. “O lugar da matemática na licenciatura em matemática”. Bolema, v. 27, n. 47, p. 981-1005, 2013.

6. Tardif, M.; Lessard, C.; Lahaye, L. “Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente”. Teoria e Educação, v. 4, p. 215-233, 1991.

7. Uma discussão mais detalhada sobre alguns dos aspectos aqui abordados é feita em [5].

8. Para uma discussão mais aprofundada do conceito de “matemática elementar” de Klein, veja [23].

9. Chevallard, Y. La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique, 1991.

10. Chervel, A. “História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa”. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.

11. Moreira, P. C.; David, M.M. “O conhecimento matemático do professor: formação e prática docente na escola básica”. Revista Brasileira de Educação, n. 28, p. 50-62, 2005.

12. Shulman, L. “Those who understand: knowledge growth in teaching”. Educational Researcher, v.15, p. 4-14, 1986.

13. Shulman, L.” Knowledge and teaching: foundations of the new reform”. Havard Educational Review, v. 57, pp. 1-22, 1987.

14. Ball, D. L.; Thames, M. H.; Phelps, G. “Content knowledge for teaching what makes it special?” Journal of Teacher Education, v. 59, n. 5, 2008.

15. Giraldo, V.; Quintaneiro, W.; Moustapha, B.; Matos, D.; Melo, L.; Menezes, F.; Dias, U.; Costa Neto, C.; Rangel, R.; Cavalcante, A.; Andrade, F.; Mano, V.; Caetano, M. “Laboratório de práticas matemáticas para o ensino”. In: Oliveira, A. M .P.; Ortigão, M. I .R. (eds.) Abordagens teóricas e metodológicas na pesquisa em educação matemática. Brasília: SBEM, 2018 (no prelo).

16. Tardif, M. “Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério”. Revista Brasileira de Educação, n. 13, 2000.

17. Nóvoa, A. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.

18. Noddings, N. “Professionalization and mathematics teaching”. In: Grouws, D. (Ed). Handbook of research on mathematics teaching and learning, p. 197-208. New York: MacMillan, 1992.

19. Davis, B.; Simmt, E. “Mathematics-for-teaching: an ongoing investigation of the mathematics that teachers (need to) know”. Educational Studies in Mathematics, v. 61, n. 3, p. 293-319, 2006.

20. Giraldo, V.; Roque, T. “História e tecnologia na construção de um ambiente problemático para o ensino de matemática”. In: Roque, T.; Giraldo, V. (eds.) O saber do professor de matemática: ultrapassando a dicotomia entre didática e conteúdo (p. 39-56). Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2014.

21. Ripoll, C.; Giraldo, V.; Rangel, L. Matemática para o ensino – Volume 1 – Números naturais. Rio de Janeiro: SBM, 2016.

22. Roque, T. História da matemática – uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

23. Schubring, G. “A matemática elementar de um ponto de vista superior: Felix Klein e a sua atualidade”. In: Roque, T.; Giraldo, V. (eds.), O saber do professor de matemática: ultrapassando a dicotomia entre didática e conteúdo (p. 34-54). Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2014.