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02/08/2021

No Livro Histórias Inspiradoras da OBMEP: Felipe Machado

Estudar no clarão da vela, porque a luz de casa fora cortada; trabalhar dos 10 aos 15 anos como garçom para ajudar no sustento da família; passar seis horas diárias em uma biblioteca para aprender sobre os temas que o encantavam; vender a bateria com que tocava em uma banda evangélica para bancar o sonho de cursar engenharia. A rotina árdua da infância e adolescência do engenheiro elétrico Felipe Machado passou-se na cidade natal, a mineira Bom Despacho, com 50 mil habitantes na região do Alto São Francisco, a 160 km da capital, Belo Horizonte.

A vida de Felipe e suas perspectivas mudaram totalmente em 2005, quando, aos 15 anos, aluno do Colégio Tiradentes, da Polícia Militar de Minas Gerais, soube da primeira Obmep (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas). Apreciador dos números e dos raciocínios lógicos, saiu da competição com uma menção honrosa. No ano seguinte, disputou a segunda olimpíada e, mais uma vez, teve a menção honrosa. Em 2007, Felipe alcançou a medalha de prata.

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“Desde novo tive muita facilidade com a Matemática. Na olimpíada, acho que fui bem porque a resolução dos problemas passava muito pelo emprego da lógica, que era o que mais gostava”, conta Felipe, que confessa não ter a menor ideia de como surgiu seu interesse por Matemática. Nem parentes nem amigos serviram-lhe de inspiração.

Aos 27 anos e radicado há quase dez anos em Belo Horizonte, onde graduou-se em engenharia elétrica pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Felipe define sua família como “bem humilde”. Foi criado pelo casal de tios Jorcelino e Tânia, com o apoio da mãe Eloíza. Na casa viviam ainda a irmã Lívia, três anos mais velha, e uma prima.

“Se tem alguém na família com vínculos com a Matemática, desconheço. A pessoa com mais tempo de estudo na família era minha mãe, que cursou até o Ensino Médio. Meu tio era segurança; minha tia, costureira. Fui um autodidata. A família não tinha condições de pagar cursinho. Tudo o que fiz foi por conta própria”, afirma.

Prima por afinidade, a professora Camila Marques, 36, relembra dos esforços de Felipe para, após o sucesso nas três olimpíadas, tentar a faculdade de engenharia em Belo Horizonte. “Conheço Felipe desde que ele nasceu. Sempre foi uma criança diferente, muito inteligente. Aos 4 anos, ainda sem ler, sabia tudo sobre dinossauros, só de examinar as figurinhas de embalagens de chocolates. A infância dele foi muito pobre mesmo, mas tinha inteligência e boa memória. Até hoje me chama a atenção sua determinação. Ao terminar o Ensino Médio, traçou uma estratégia de estudo. Sempre falou que estudaria engenharia na UFMG. Mesmo se tivesse que morar debaixo de viaduto ou em um barraco na porta da universidade. E conseguiu”, conta Camila.

Não foi fácil, apesar do empenho. Felipe trabalhou dos 10 aos 17 anos. Primeiro, em um hotel, como garçom. Aos 15 anos, empregou-se na Prefeitura de Bom Despacho. Dois anos depois, deixou o trabalho para se concentrar nos estudos. Sem dinheiro para comprar livros, passava até seis horas diárias na biblioteca da cidade, além do período escolar. Aprovado para a UFMG, mudou-se para Belo Horizonte e conquistou uma bolsa.

“Morava no abrigo para estudantes universitários. Graças às olimpíadas, fui contemplado com uma bolsa de estudos que mantive até começar os estágios. Minha família era totalmente sem recursos. Teve dia que eu estudava com vela porque a luz tinha sido cortada. Tive de trabalhar desde novo. A olimpíada ajudou-me muito e considero uma honra ter participado de três delas. O melhor das Obmeps foi a oportunidade de participar do Picme. O programa representou uma grande ajuda financeira e acadêmica. Sem o Picme, precisaria trabalhar. Como o curso era em tempo integral, não teria como”, diz.

De acordo com Felipe, os ensinamentos ministrados no Picme são perenes, porque lhe proporcionaram um desenvolvimento intelectual expressivo, válido “diariamente” no exercício da engenharia. Colega na UFMG, Marcos Felipe Oliveira Ribeiro, 27, rememora as primeiras impressões que teve de Felipe quando ingressaram como calouros na Engenharia Elétrica em 2008.

“Inicialmente, notei que era uma pessoa muito simpática, de bem com todo mundo, alto astral. Ao longo do curso, travamos uma grande amizade. Vi o quanto Felipe é determinado. Ele brincava com o fato de as pessoas na terra dele o terem alertado para que não se desapontasse caso não passasse no vestibular, que era muito difícil, ainda mais para um garoto sem recursos. Felipe foi galgando todas as etapas. Ele me disse que só voltaria a Bom Despacho formado engenheiro. Ele se destacava na turma, sempre pela Matemática. E o nível da Engenharia Elétrica era muito alto. Chamava a atenção a praticidade com que resolvia os problemas, mesmo os dificílimos”, conta.

A partir do estágio, Felipe ingressou no mundo profissional. Trabalha como engenheiro de radiofrequência na empresa BWTech, onde presta consultoria técnica e exerce a gerência de produtos na área de planejamento de redes de telecomunicações móveis. “Uso muito a Matemática no dia a dia do trabalho”, diz ele, que, fora a Matemática, tem outra grande paixão, o futebol. Torcedor do América-MG, Felipe gosta de jogar bola. “Eu tento”, brinca. Casado, sem filhos por enquanto, Felipe avalia ter valido a pena enfrentar todas as dificuldades da pobreza para alcançar o sonho de tornar-se engenheiro. “Meu caso mostra que o esforço no estudo propicia mobilidade social.”

*Texto retirado do livro “Histórias Inspiradoras da OBMEP

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