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05/12/2019

Entre português e russo, Misha prefere os números

Luiza Barata 

Em sala de aula, Mikhail Verbitsky costuma falar em inglês sobre as “várias geometrias” que pesquisa. Mas desde que visitou o Brasil pela primeira vez, em 2010, passou a estudar português e gosta de praticar o idioma. “Não acho tão difícil”. Para ele o desafio linguístico é outro. “Acho francês mais complicado… ou russo. Russo é muito mais difícil que português”, diverte-se o pesquisador que tem o temido idioma como língua nativa. Para Mikhail, mais conhecido como Misha, fácil é lidar com incontáveis cálculos matemáticos. É entre os números, contas e aferições geométricas que ele gosta de trabalhar. 

Misha gosta de ouvir músicas russas para tentar diminuir a distância entre Moscou, onde cresceu, e o Rio de Janeiro. “Gosto de ouvir um som mais underground da Rússia, algo como cyberpunk industrial. Isso não tem tanta relação com o punk, em si”, distingue com ares de especialista no assunto. “É mais para o lado industrial da música mesmo. Também ouço apocalypse folk”, revela o pesquisador que chegou a conciliar o meio acadêmico com a gravadora independente que criou. “Logo depois de conseguir o diploma de doutorado, não tinha um emprego fixo. Desenvolvi a gravadora para divulgar bandas que fugiam ao mainstream e ganhar um dinheiro extra.” 

Nem mesmo os tempos adversos para a pesquisa, fizeram com que ele desistisse do percurso matemático. Misha cresceu vendo os pais se dedicarem ao ensino acadêmico. Filho único, ele viveu com a mãe, Seraphina, e o pai, Serguei, entre artigos de física e química. Aos doze anos, se tornou aluno da Escola de Moscou Número 57. “A influência antissoviética era muito forte, o que fazia com que o governo não investisse tanto no ensino. Mas o lugar é referência e continua sendo até hoje. A escola é oficialmente pública, mas precisa de recursos privados para existir.”

Nos quatro anos em que estudou lá, Misha viu o interesse por um campo científico que ainda não tinha em casa, a matemática, começar a tomar forma. “Isso não foi de imediato porque na União Soviética (URSS) não tínhamos muitas opções para um matemático trabalhar. Naquela época, era preciso ser filiado ao Young Communist Union para exercer a profissão na área de pesquisa. Mesmo assim, encontrei um jeito para seguir a carreira”. 

Ao final da década de 1980, o pesquisador começou a traçar as primeiras impressões acadêmicas, com resultados científicos sobre uma área mais refinada da geometria. Misha provou o uso do teorema global de Torelli para variedades hyperkähler e a conjectura espelhada no caso hyperkähler, temas que se aprofundou ao longo dos anos acadêmicos. 

Para ir em busca de novas oportunidades, fez a graduação em Matemática na Universidade Independente de Moscou (IUM), onde se mantém como membro e já ocupou diferentes posições acadêmicas desde 1996. “Foi preciso sair da Rússia. Como não quis me associar aos grupos de acadêmicos que existiam por lá à época, busquei, então, por oportunidades fora”.

Acompanhado dos pais, os três passaram a formar uma espécie de time de cientistas viajantes. Seguiram para o Estados Unidos, onde Misha ficou por dois anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como pesquisador. Depois ele fez doutorado em Matemática na Universidade de Harvard. O resultado final foi a tese “Cohomology of hyperkahler manifolds”, da parceria com o professor soviético, David Kazhdan, referência mundial em teoria da representação. 

Ao todo, o matemático ficou por quase sete anos nos EUA. Ainda neste período, atuou como colaborador do centro de pesquisa que teve Albert Einstein como um de seus primeiros professores, o Instituto de Estudos Avançados (IAS), em Princeton. “O que mais gostei nos Estados Unidos foi o contato com intelectuais, com pessoas de diferentes países. Mas rejeitava a política deles de privatizar tudo, principalmente a área da educação”.

Foi também nos Estados Unidos que Misha começou a se aventurar na internet. “Quando estava nos EUA, queria saber sobre a Rússia nas redes e comecei a usá-la. Algum tempo depois, tive vários projetos na internet, que não tinham a ver com matemática. Escrevia sobre música, política e poesia”.

De volta à Rússia, a família encontrou um cenário sócio-político diferente de quando haviam deixado o país. A conjuntura no mundo já era outra: a URSS havia chegado ao fim havia alguns anos, mas a falta de empregos ainda era algo a se enfrentar .“Achei que teria algo que pudesse fazer pelo meu país, mas não tinha. Recebia mais dinheiro para escrever sobre política do que para trabalhar como pesquisador. Na pesquisa, meu salário chegou a ser praticamente vinte dólares por mês.”

Para tentar driblar o caos econômico, o matemático conciliou o cargo de pesquisador da IUM com postos em outras universidades por onde passou. “Vivi em dois países simultaneamente por alguns anos. Mantive minha estadia na Rússia e conciliei com passagens por universidades na França, Alemanha e Reino Unido”. Atuou também na tradicional Universidade de Glasgow, na Escócia, onde morou por sete anos. 

De todos os países por onde passou, Misha acha difícil decidir em qual mais gostou de estar. “Todos os países têm seus altos e baixos. É complicado comparar…”, esquiva-se. “Gosto muito do Brasil, mas ainda não conheci tudo.” A relação do matemático russo com o Brasil teve início em 2011. Ao ser aprovado no processo seletivo para uma bolsa acadêmica da Fapesp, passou a fazer visitas à Unicamp para pesquisa. “Gostava muito de ver os grafites pelas ruas de São Paulo e dos parques.” No mesmo período, fez uma rápida viagem ao Rio de Janeiro, quando conheceu o IMPA. 

Misha pode até não saber dizer em qual país mais gostou de estar, mas entre os dois estados brasileiros, logo se entrega: “gosto mais do Rio por conta das praias.” Em 2017, foi aprovado para fazer parte do corpo docente do IMPA, onde atua desde então. O pesquisador trabalha com geometria simplética, geometria de estruturas hyperkähler, variedade de Kähler e quaterniões. 

Os mais de 11 mil quilômetros que separam a capital russa do Rio não diminuem o orgulho que Misha sente pelos quatro filhos. Nem mesmo as quase dezessete horas de vôo são empecilho para que ele deixe de acompanhar o desenvolvimento de Seraphina, Alexei, Maria e do mais novo, Victor. 

“Todos têm ligação com a matemática, mas só a minha filha mais velha, Seraphina, tem publicações na área. Ela é neurocientista e bióloga. O Alexei é gamedesigner. Maria, de 19 anos, estuda matemática na universidade e Victor, com 15, ainda está na escola”. Como os mais novos ainda não trabalham, conseguem visitar o pai. Os jovens costumam vir ao Brasil quando estão de férias e têm a ida à praia como atividade favorita. 

Morador de Copacabana, Misha não estabelece semelhanças da vida que leva no Rio para o ambiente onde morava na Rússia. Neste quesito, o pesquisador é enfático: “o Brasil e a Rússia não têm nada parecido. Os dois estão nos BRICS, e isso é a única coisa que vejo em comum”, conclui.